28 de dezembro de 2004

Um dia sem luz

Um dia eu quis que faltasse luz para que todos pudessem compartilhar de meu tédio e ajudar a transformar meus dias solitários em grandes arroubos de aventuras e amores.
Um dia eu quis que faltasse luz para que todos pudessem compartilhar a minha cegueira ao contemplar o dia seguinte. Para que a dúvida pairasse sobre todos e que eu não me sentisse exclusivo.
Um dia eu quis que faltasse luz e que a praia estivesse de ressaca para que ninguém aproveitasse o sol e a areia convidativa do verão. Queria ter um laptop para não precisar nem da luz nem dessa escrivaninha escravocrata.
Um dia eu quis que faltasse luz para escurecer o futuro de todos e não só o meu. Para que os relógios definitivamente parassem e o cuco morresse sem ar dentro daquela janelinha escura.
Um dia eu quis que faltasse luz para as prostitutas faturarem hora extra. Para que os ladrões se satisfizessem logo e parassem de roubar. Para que houvesse desculpas suficientes para esvaziar os estoques de bebidas geladas.
Um dia eu quis que faltasse luz para que eu visse os sorrisos luminosos a me desejar o melhor. Para que o abraço fosse mais forte e que os trovões não assustassem mais que os relâmpagos.
Um dia eu quis que faltasse luz para que essas máquinas que nos mantêm vivos perdessem a utilidade. Para que pudéssemos viver menos produtivamente, todos nós. Logo eu que não sei mexer com ancinho ou formão.
Ah, se não fosse a luz agora essas palavras não poderiam estar sendo ditas e, na verdade, não o estão pois não sei se alguém as lerá ou dirá.
Por isso eu quis que faltasse luz. Assim talvez minhas palavras tivessem mais sentido.