29 de julho de 2011

Je suis né il ya 10.000 ans

“Como alguém com mais de trinta, pretenso admirador da cultura dos anos 60 e 70 nunca tinha ouvido falar de Serge Gainsbourg!?”

“Como alguém cujos ídolos sempre foram figuras conturbadas, ambíguas e malditas nunca ouviu falar de Serge Gainsbourg!?”

“Como alguém que gosta de música, cinema e animação nunca tinha ouvido falar do filme Serge Gainsbourg – Vie Heroique (2010)!?”

Estas frases flanavam (para usar o termo francês) na minha cabeça enquanto saía do cinema. Minha ignorância sobre o protagonista teve a ajuda dos subtítulos um tanto quanto mercadológicos do filme tanto na versão em francês (“vida heróica”), que se apropria da infância do cantor na Paris ocupada pelos nazistas, apenas cerca de dez ou doze dos primeiros minutos; como na versão em português (“o homem que amava as mulheres”), talvez numa tentativa de surfar uma onda de um outro filme baseado numa trilogia editorial de sucesso. Confesso que imaginei uma ficção sobre um pianista maldito, numa Paris noir com pitadas daquele humor ácido francês e acabamento de quadrinhos em cores pastel, outra especialidade francesa. Enfim, me preparei para cento e vinte minutos de clichês.

E tal não foi minha surpresa ao deparar-me com a biografia de uma pessoa impressionante. Uma alma contorcida. Um artista fervoroso, de verve e presença inusitada. De postura agitadora, crítica e vanguardista, ansioso de rompimento com óbvio, do estático e do comum. Enfim, um provocador. Enquanto Jim Morrison agitava Los Angeles e morria em 1971, Serge Gainsbourg agitava a França e seguiu agitando até bem depois da década de 70, tendo deixado esta vida em 1981. E como as semelhanças não são apenas coincidências, ambos jazem eternamente no Pére Lachaise, em Paris.

O filme inicia-se mesmo com a infância, a iniciação na música através do pai, sua relação com as irmãs e o aspecto provocador que já dava o ar da graça, exemplificado na conversa dele, aos dez anos, com o chefe da polícia nazista que distribuía as estrelas amarelas aos judeus. Um pequeno manipulador. Impagável. Além de sua veia artística expressada pela pintura e a criação de personagens que, aliás, perfazem sua existência, inclinando-o uma hora para a vida reta e outra para a torta. Menção honrosa aqui para as animações e suas versões “reais” que o acompanham nos momentos-chave da sua vida/filme.

Afora os aspectos técnicos, Serge é interpretado por um efetivo sósia: Eric Elmosnino. Perfeito no papel. Feio, bruto, machista e ao mesmo tempo frágil, encantador e apaixonado. Consegue transparecer aquele ar blasé e constantemente irritado com seus olhos esbugalhados e orelhas de abano.

Brigitte Bardot também é bem representada por Laetitia Casta, mas não empolga. Quem empolga é Lucy Gordon e sua interpretação de Jane Birkin. Contundente em sua beleza frágil. Firme e doce ao mesmo tempo. Não fosse seu falecimento precoce (Lucy foi encontrada morta em seu apartamento em 2009), ela poderia estar figurando suas feições élficas outras estrelas de grande magnitude.

Por fim, Serge é como um Raul Seixas francês. Precursor de um estilo de vida rock’n’roll, easy rider sem sair do lugar, levando as relações e as sensações ao limite, mas com o atenuante de não estar envolvido com nenhuma seita oculta ou irmandade secreta: seus demônios eram seus próprios e sua salvação era a música, o excesso e os amores.

Numa França não muito amiga de filmes biográficos de suas grandes personalidades, Vie Heroique vem para juntar-se a outro clássico biográfico, Piaf, e continuar a formação da constelação francesa nesse universo essencialmente hollywoodiano.

6 de julho de 2011

Textos soltos

Às vezes uma idéia sorrateira passa tão rápido que a gente sente o cheiro, mas não consegue achar o rastro. Abaixo seguem os cheiros de algumas cujo rastro eu nunca mais achei.

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Ela era uma bomba de efeito retardado. Suas palavras eram o pavio incendiário que percorria a distância que os separava. Quando estavam juntos, tudo explodia. Ela era fogo e ele pólvora.


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Ele era tão bom com as metáforas que transformou sua própria vida em uma. Enxertava sonho nas situações reais como se romanceando fatos históricos. Deixava que a força das personagens tomasse conta da narrativa de sua vida pintando cútis pérsicas de sonho sobre as rugas e cicatrizes da realidade. Enganava-se de todas as maneiras possíveis.

***

Minguante ou crescente
o importante
é essa lua sorrindo pra gente

***

Imolo em liturgia minhas asas
Este sangue que escorre é para ti
Abro a boca e o sânscrito fala
Encapsulada, minha alma é para ti
Terás minha carne e minha presença
Por certo tema não esteja ali
Estarei divagando em eterno poema
À deriva em palavras que não são para ti