10 de setembro de 2008

Epitáfio da Infância

Qual a primeira palavra que se pronuncia depois de acordar? Quem consegue um tratado antropológico ao abrir os olhos depois de uma noite reconfortante?
Putaquepariu, talvez seja um bom exemplo. A perplexidade de se acordar só se traduz nessa palavra-frase, palavra-chave.
Estou vivo...deitado...o teto é branco...a chuva cai...há algo de mais excitante do que chegar à conclusão que toda aquela ação que se passou em um segundo e durou as horas da noite não passam de sinapses desconexas?

Difícil é começar a discorrer sobre amizade, passado, lágrimas e alegrias de uma vida assim...acabando de acordar. Mas agora, desperto e consciente, escrevo essas linhas de memória, insuflado pelo prolixo que me antecedeu.

Passei. Passei bem colocado, à frente de uma tal Adriana que acompanharia inexorável minha infância naquela instituição. Quem era? Quem é? Não importa. Só importa seu nome abaixo do meu na lista de nomes pretos fixada na parede de ladrilhos verde-escuros no grande pátio coberto daquele prédio. Aquele prédio que presenciaria tantas filas, formas, areia, dentes e sangues.
Não imaginava que ali faria rios na terra e passearia junto às galinhas num criadouro de almas independente de sua espécie. Assim fui criando-me, com professores da vida, quadros que caem, risos e jogos de futebol. "Campeones...olê, olê, olê", gritávamos todos, vencedores e perdedores, abraçados em direção ás escadas de nossos primeiros degraus pessoais e profissionais.

Pés, pernas e virilhas ao vento. Cresci com imagens inimagináveis, felizes retratos tortos na parede da minha memória. Andares mal-assombrados, elevadores amaldiçoados, mãos e línguas entrelaçando-se na mais pueril inocência. Gostava mais de estar ali do que em qualquer outro lugar. Ejetar de balanços e guerrear com almofadas nos recantos culturais mais férteis. Os primeiros acordes da minha infância soaram como metades de cocochocando-se umas contras as outras, atabaques e bongôs em roda. Triângulos dissonantes ainda ressoam nos meus ouvidos marcados por letras fortes e avançadas para minha mente...me pedindo consideração por mulheres alteradas e rosas inválidas.

E as cambalhotas salientes nos mini colchões azuis que brotavam das paredes proibidas. Essas mesmas paredes que enceravam, após a hora de aprendizado, todos os prazeres que o corpo de criança precisava para transcender. Na falta deles, qualquer objeto virava diversão. Carteirobol. Fui campeão, acertei olhos e narizes. Porradobol, idem.

E os amores? Amava sem preconceito. Amava a alegria de amar, de conviver, de tocar, cheirar, sentir pulsar o primeiro sintomas que hoje me fazem sonhar. O amor desta época é meu para eternidade. Todos os olhos azuis, verdes, brilhantes ou opacos, perversos ou lascivos. Todos corpos, desajeitados ou potentes, imprevisiveis ou expostos. Que grandes surpresas esses corpos me prepararam. E o meu próprio, levado ao limite em todas as situações. Suava e gargalhava como se morresse se não o fizesse até o último instante.

E hoje vejo todos aqueles rostos resplandecentes atrás dessa tela branca, leitosa...imprecisa. Vejo os cabelos negros do Milho, a envergadura plácida do Bernardo, as bochechas rosadas da Fernanda, as madeixas em caracóis da Helena, a tez de opala da Rosana.

Quem eram? Quem são? Não importa. Vale que existem como são em minha mente até a hora de acordar.

Minerva