30 de maio de 2012

Mesmo Lugar


Mesmo lugar
é luto, é triste
é teu dedo em minha face em riste
sacudido a me reprovar

Salgado gotejar
escorre lento
a semente que seria sustento
nunca chega a germinar

Mesmo lugar
é frio, é pouco
é um grito louco
sufocado e rouco
entre tu e eu a nos afastar

O espaço cresce
enquanto permanece
essa tentativa estranha
entre amor e manha
a nos entrelaçar

Mesmo lugar
uma casa, um cômodo
um leve enjôo e o incômodo
na expectativa de tudo acabar

E assim esperamos
toleramos e amamos
de consciência tranquila
enquanto o olho cintila
vendo o tempo, a suspirar

23 de maio de 2012

Revoada

Às vezes confundo
a terra seca e o chão fecundo
e me ponho a semear
Até me surpreender
ao tempo da colheita
sob o sol, a vista estreita
com o par de asas negras
maduras, prontas para voar
Ainda tento com ancinho
por receita e pergaminho
a erva negra extirpar
mas o campo põe-se em algazarra
como os tambores da fanfarra
um infinito bater-asa
do milho negro a revoar
E no campo ali vazio
ouço apenas o assobio
da negra revoada a se afastar

9 de maio de 2012

Cão Sem Dono

Você tá vendo ali na esquina
bicho lambendo a ferida
querida, esse sou eu
ou o que de mim sobrou

Vou vagando pelos cantos
depois que o nosso desencanto
finalmente se rompeu
e acabou com nosso amor

Em vez de beijos todo dia
vivo em frente à padaria
das sobras que ninguém comeu
mastigando os velhos ossos
desse amor que já foi nosso
e agora já venceu

E quando bate o desespero
me concentro no galeto ou
nesse soneto que é só teu
Vem comprar logo o almoço
e me larga mais um osso
como você prometeu

E deixa o estabelecimento
e nele todo o sentimento
que tivera antes do fim
Vou ficar ali na esquina
te olhando na surdina
até que passes por mim

Então corro ao teu abraço
pra roubar mais um pedaço
da carne boa que comprou
E sob gritos e impropérios
vou me esconder no cemitério
e tu nunca mais me encontrou

Mas sempre fico ali na esquina
a lamber minha ferida
querida, é onde aos poucos eu morro
De vez em quando a velha bruxa
vem me bater com o guarda-chuva
me chamando de cachorro

E me recolho ao meu escuro
na sarjeta ao pé do muro
onde espero amanhecer
Quando tu vens comprar teu pão
e eu com sofreguidão
estendo a língua a te lamber

3 de maio de 2012

A contribuição dos Beatniks


Fiquei curioso quando soube que o diretor brazuca Walter Salles (Central do Brasil, Água Negra e Diários de Motocicleta) estaria à frente da mais nova produção do clássico On the Road (em português, Na Estrada), do célebre autor beatnik Jack Kerouak. Tão logo confirmei a informação corri atrás de outras referências que me pusessem em melhor contato com o clima da época e com os “ideais” beatniks e os achei em outros dois grandes nomes influenciadores do movimento: William S. Burroughs e Allen Ginsberg.
O mundo vivia a ressaca de seriedade do pós-guerra. A juventude, sufocada pelo chamado à pátria e para o cumprimento de responsabilidades para com seu país, vivia agora não mais sob a ameaça flagrante de um novo conflito (que só chegaria, a ameaça e não o conflito em si, anos mais tarde com a bipolarização da Guerra Fria). Viveu-se então um período de grande efervescência cultural.
A geração beat, no meu pretenso entendimento (ai da sociologia e da antropologia) foi o grande estopim da revolução contra-cultural que tomou conta dos EUA até a década de oitenta. É nela que se encontram as sementes do experimentalismo, do livre fluxo de consciência, do contato transcendente e a noção de pertencimento ao cosmo, porém num grau ainda menor do que os hippies dos seventies, por exemplo. Sem falar da grande influência da espontaneidade do Jazz que fazia a trilha sonora da vida na época que seria substituída depois pelo Rock and Roll. Não à toa, esses três nomes citados acima (Kerouak, Ginsberg e Burroughs) são fontes frequentes de inspiração para grandes obras dos anos 60 e 70, tendo estado nas poesias de Jim Morrison, nas músicas de Frank Zappa e até na capa do lisérgico Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (Burroughs) dos Beatles.
Assisti recentemente a dois filmes que me levaram a entender e vivenciar um pouco desse  imaginário beatnik: “O Uivo” (Howl, 2010) onde James Franco (172 Horas, Homem Aranha, Milk) encarna com louvor o poeta Allen Ginsberg e “Almoço Nu” (Naked Lunch, 1991) baseado na obra homônima de Burroughs e dirigida por ninguém menos que David Cronenberg (A Mosca, Um Método Perigoso).
Em O Uivo, conta-se a vida de Ginsberg em flashbacks enquanto a relevância de seu poema homônimo é julgado num tribunal popular. O caráter autobiográfico do poema é um prato cheio para esse recurso pois mesmo camuflado sob um confuso (e às vezes incompreensível) fluxo de consciência do poema, os personagens principais na vida do autor vão tomando forma. Proibido de circular sob acusação de estimular a promiscuidade e atentar contra a moral, o poema de Ginsberg ganhou notoriedade e correu o mundo após ser sonoramente absolvido de seus supostos pecados. Era de se esperar que a quadrada sociedade americana da época (da época?) se exasperasse ao ler coisas do tipo 

“Eu vi os expoentes da minha geração, destruídos pela 
    loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
...
que morderam policiais no pescoço e berraram de 
    prazer nos carros de presos por não terem cometido 
    outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica,
que uivaram de joelhos no metrô e foram arrancados do 
    telhado sacudindo genitais e manuscritos,
...
que adoçaram as trepadas de um milhão de garotas
    trêmulas ao anoitecer, acordaram de olhos vermelhos
    no dia seguinte mesmo assim prontos
    para adoçar trepadas na aurora, bundas luminosas 
    nos celeiros e nus no lago,”
Só para dar um exemplo.
Já em Almoço Nu, Cronemberg nem precisa de muito para interpretar o texto altamente lisérgico e biográfico que Burroughs já havia escrito. O método de Burroughs era ainda mais controvertido pois deixava que o fluxo de consciência viesse à tona sob efeito de drogas alucinógenas, o que dava, digamos, um colorido especial. Esse método, no entanto, não é novo. Aldous Huxley do cultuado Admirável Mundo Novo, por exemplo, descreve em As Portas da Percepção, de 1954, suas impressões num experimento empírico sob efeito de mescalina, LSD e outras drogas. Porém, com Burroughs, em vez de descrever as sensações efeito da droga, ele inventa histórias e cria sob essa névoa, o que mistura fatos marcantes de sua biografia, como o assassinato de sua mulher Joan por ele mesmo durante uma brincadeira de Guilherme Tell com uma pistola calibre 32, com viagens insólitas como as máquinas de escrever que se transformam em insetos paranóicos, numa viagem kafkiana como ele mesmo qualifica.
Os dois filmes dão idéia da ânsia por liberdade, da necessidade de expressão e da vontade de pertencimento que os anos 50 criaram nos EUA ainda feridos da Segunda Guerra. Pelo que pude perceber do trailer, Na Estrada tem menos referências a drogas e homossexualismo do que Almoço Nu e O Uivo, respectivamente, o que o torna talvez mais palatável ao expectador comum, que pode ir ao cinema esperando algo parecido com Central do Brasil ou Diários de Motocicleta, dirigidos pelo mesmo Salles, cada vez mais especializado em road movies. 
Minha conclusão é que os beatniks foram os pais dos hippies, avós dos yuppies, bisavós da nossa geração e um passado já distante da geração Y ou @ ou qualquer outro símbolo que a caracterize, descrevendo uma evolução que vai da necessidade de libertação da alma presa pelas limitações do corpo à necessidade de construção de apetrechos físicos que estendam os limites dessa prisão corporal. O jovem dos anos cinquenta ouvia Jazz e escrevia sua liberdade individual viajando e deixando correr sem amarras o fluxo de sua consciência; o jovem dos anos sessenta e setenta ouvia rock e panfletava a paz e o amor querendo transformar não só a sua vida, mas a sociedade mais livre; o dos anos oitenta perde esse romantismo e é mais pragmático, tomando consciência de que liberdade se conquista mesmo é com dinheiro no bolso, liberdade para ele é poder; já o dos anos noventa começa a rever esse conceito e experimenta a liberdade virtualmente, porém preso em sua cadeira mas com a janela da internet lhe abrindo cada vez mais os horizontes; e isso se consolida nos anos 2000 quando liberdade é expressar-se livremente, criar, compartilhar, rir e chorar publicamente na web. Já que não deu pra ter liberdade nessa sociedade careta, que tal um novo ambiente onde podemos colocá-la em prática? 
Viva os beatniks cujos ideais, em última análise, inspiraram a liberdade que temos hoje com a internet!