24 de setembro de 2010

Quando a gente morre, a gente vai pro futuro.

Assisti nesse final de semana o blockbuster brasileiro Nosso Lar. Baseado no livro homônimo de Chico Xavier, o filme conta a história de André Luiz, médico que desencarna e passa por um purgatório antes de chegar à colônia astral de recuperação de espíritos recém-desencarnados chamada Nosso Lar.

Viagem à parte, o filme é muito bom tecnicamente: figurino new-age intrincado, cenários terrenos caprichadíssimos (destaque para a sala de cirurgia ainda na Terra onde o protagonista morre), efeitos especiais que criam um clima futurista e, acima de tudo, é bem fiel ao livro. Muito denso de ensinamentos e doutrina, o livro constitui um enorme desafio ao ser adaptado para o cinema. O critério utilizado de focar mais no crescimento moral do protagonista do que nas numerosas armadilhas que poderiam levar a uma descrição prolixa do ambiente de Nosso Lar que não agregariam nada, a meu ver, foi um acerto. O ponto negativo, por outro lado, ficou para a interpretação dos atores. Os diálogos duros pareceram-me os de um filme bíblico da década de sessenta. A má interpretação pode ter sido resultado da própria linguagem do livro, antiga e rebuscada demais para os dias de hoje.

Sou um curioso pelo tema e já li alguns livros espíritas. De longe Nosso Lar foi o melhor, seguido bem de perto por Há Dois Mil Anos (esse vale uma resenha só para ele e, quiçá, um filme). Além da reencarnação, característica diferencial do Espiritismo, um grande conceito bem aproveitado pelo filme é de que as coisas na Terra são reflexos das coisas de Nosso Lar. Ouvi um comentário interessante: “Engraçado, a gente morre e não vai pro Céu. Vai pro futuro”. Parece que Nosso Lar funciona como Matrix: a realidade da nossa vida terrena é um reflexo da tecnologia e da vida levada em Nosso Lar. A tecnologia e a vida na Terra são a tecnologia e a vida do Céu, só que limitada pela matéria e pelo esquecimento que a reencarnação causa. Não quero aqui abrir discussões teológicas, mas literariamente essa é uma boa idéia. Outro comentário: “O Céu é um saco, tem ministério disso, ministério daquilo! Para isso eu fico aqui mesmo. O Inferno deve ser mais interessante”. Novamente, cada um com seus conceitos.


Como um fenômeno mercadológico, o filme sem dúvidas surpreende. Nosso Lar já foi visto por mais de 1,6 milhão de pessoas (até 13/09) e está na frente de grandes lançamentos como Karatê Kid, Meu Malvado Favorito e A Origem.O filme de Chico Xavier já havia sugerido que o tema iria pegar: conquistou o título de maior bilheteria nacional no final de semana de lançamento dos últimos 20 anos. E, na minha opinião, abriu um novo filão: o do filme espírita. Preparem-se para ver outros lançamentos em breve pois há uma infinidade de livros (desde doutrinários a romances épicos) que podem virar bons roteiros, ainda mais se as apostas de que Nosso Lar será o representante do Brasil na próxima disputa do Oscar se concretizarem. Eu, particularmente, acho muito difícil. O tema é restrito, o americano não se encanta com essas coisas, os efeitos são arcaicos em comparação aos utilizados por lá e, apesar de ter grande bilheteria no currículo, terá de concorrer com produções mais elaboradas e com temas mais abrangentes das outras produções estrangeiras.

No final das contas, Nosso Lar é isso: um bom filme, mas com vários pontos fracos. Mais ou menos como o próprio Espiritismo: uma doutrina sólida e consolidada, mas ainda com muitos preceitos a serem entendidos.

8 de setembro de 2010

O gerúndio do caminho

Vi há pouco tempo a mini-série Os Pilares da Terra, baseada na obra homônima de Ken Follett. São apenas oito episódios que, como o livro, contam a história da sucessão do Rei William da Inglaterra, usurpador do trono, pela Rainha Matilde, legítima herdeira, nos idos do Séc.XII através da estória da família de um pedreiro contratado para a construção da catedral de Kingsbridge.

O livro, desnecessário dizer, é muito melhor que a série, mesmo produzida por ninguém menos que Ridley Scott e recheada de grandes nomes no elenco como Donald Sutherland (o pai real do protagonista da série 24 Horas) e Michael MacFadyen (o Mr. Darcy de Orgulho e Preconceito). A série não chega a empolgar apesar da grandiosidade da produção sem dúvida monumental desde os cenários (principalmente nos primeiros episódios) ao figurino.

Independente disso tudo, o personagem principal da trama, Jack Jackson, filho adotado pelo mestre de obras da catedral, impressiona. É um rapaz de uma sensibilidade tamanha que beira a loucura dos gênios. Numa passagem ele diz ouvir os sussurros da pedra dizendo para ele onde bater seu formão para fazer as lindas gárgulas das quais é responsável. E é essa sensibilidade que o diferencia dos outros personagens no que diz respeito às suas motivações.

Jack vive num mundo só dele, conversando com os sussurros que ouve. Como um cão, ama e odeia intensamente e chega a (cuidado, spoiler!) pôr fogo numa igreja para que seu pai adotivo seja contratado para os reparos. Gosto dessa intensidade desmedida, dessa paixão distorcida. Não que me identifique nelas (tudo bem, um pouco) mas é um traço que gosto de ver nas pessoas, um brilho nos olhos de fazer o que gosta, mesmo que o gosto seja duvidoso. A persistência em algo que se acredita é gratificante.

E não precisamos ser necessariamente artistas para chegar nessa sensibilidade. Paixão se esconde nos mais estranhos lugares. Há quem se perca descrevendo suas sensações enquanto pesca ou dirige em alta velocidade. Dá pra notar num sorriso, num olhar quando alguém está satisfeito com o que faz e isso faz toda a diferença na qualidade do que se quer ver realizado. Gosto de me cercar de pessoas assim, pois também sou um pouco assim. Gosto do mergulho, do aprendizado e da entrega que se faz às paixões. Não raro busco apaixonar-me por alguma coisa, como um livro ou um tema que preciso me aprofundar mais para algum trabalho qualquer ou uma idéia que precise ser melhor desenvolvida.

O problema das paixões é que elas tendem a morrer uma vez que o objetivo é atingido. Há um momento do seriado em que uma suposta bruxa amaldiçoa um líder religioso usando a seguinte frase: “tu vais subir bem alto em suas ambições tão somente para cair”. De tanto lutarmos sufocados por nossos ideais, obnubilamos o fato de que, uma vez conquistados, esses ideais servirão apenas como enfeites na nossa memória. Fotografias encardidas e poeirentas de uma apoteose que já não nos tira o traseiro da poltrona. O melhor a fazer, então, é viver a antítese: desejar sempre e nunca alcançar. Conscientemente. Sem o sofrimento que o inalcançável (com o próprio agravante de ser paixão) pode causar, mas com esforço. Uma vez ouvi a expressão pleasure delayer no filme Vanilla Sky. Não acho que essa seja a solução, uma vez que o caminho é o prazer e não o destino em si. Talvez devêssemos abrir os olhos para o valor dessa busca, baixando um pouco a bola do seu encontro. É preciso sensibilidade para isso. Não essa louca como a de Jack Jackson, mas uma lúcida, que enxerga no gerúndio do processo a afirmativa de sua conclusão.

Por isso assisti Os Pilares da Terra. Com a intenção de percorrer um caminho prazeroso que me fizesse apaixonar novamente pela obra de Ken Follett. Não consegui, mas certamente alguns momentos entre os oito episódios fizeram alguns pêlos eriçarem-se.

3 de setembro de 2010

Presença

Tenho certeza que já estive com a morte. Não a vi, na verdade, mas estou certo que ela já me viu e consultou seus alfarrábios infinitos sobre minha posição na lista de reservas no Descanso Eterno.

A primeira vez que compartilhamos o mesmo recinto foi lá em casa. Eu não a convidei, ela apareceu de surpresa. Tinha um compromisso marcado já há algum tempo com a minha avó, que não conseguiu nos avisar com antecedência devido às seqüelas de um derrame. Eu ainda era criança, uns seis ou sete anos e estava dormindo na hora que ela chegou. É certo que me viu pois o caminho da porta de entrada lá de casa até o quarto da vovó passava necessariamente pelo meu. Eu, que sempre dormi de porta aberta até chegar à adolescência, não devo ter despertado seu interesse na época. Ela tinha coisas mais urgentes para resolver. No dia seguinte, e ainda ignorante do acontecido, fui para a escola me sentindo mal com dor de barriga. Pedi à professora para ir embora e ela me levou à coordenação de onde ligaram para a minha casa. Meus pais atenderam e disseram que não poderiam me pegar naquele momento, certamente atabalhoados com as providências necessárias para completar o trabalho começado pela funesta visita. No fim das contas, a passagem dela, mesmo que só resvalando na minha existência, já me causou complicações.

Certamente estive próximo dela outras vezes em situações associadas a meus avós. Todos bem longevos, freqüentavam assiduamente hospitais. Algumas vezes em urgência, outras apenas corriqueiramente. Nesses hospitais, eu não podia deixar de sentir a presença dela passando pra lá e para cá, como uma formiga diligente. Não chegava a vê-la ainda cara-a-cara, mas percebia o final das barras de seu manto surrado quando virava corredores ou entrava por entre as grandes portas amarelas da UTI.

Numa dessas visitas hospitalares à minha outra avó, entrei no quarto junto com algumas tias barulhentas demais para o recinto e a ocasião. Tinha uns dezoito anos e essa era a avó com que mais compartilhei bons momentos de infância. Ela, deitada na cama, havia feito há pouco um exame onde lhe introduziram um tipo de contraste no sangue para identificar as máculas do fígado. Ironicamente, o próprio contraste causou uma insuficiência no fígado que a levou de nós. Minhas tias disputavam sobre qual filho era mais bem sucedido em sua carreira enquanto minha avó olhava para mim com olhos estranhamente lúcidos e sorria, como a zombar das tias mesquinhas em querela. Não entendi na hora, mas o que ela me disse naquele olhar era “estou indo embora para cima e elas aqui de cabeça baixa”. Peguei na sua mão com a força que merece um abraço de despedida e ela se foi.
Quase caí no chão por conta do esbarrão que a morte me deu ao sair do quarto. Mal-educada, nem pediu desculpas. Mas não tomei pelo lado pessoal e até, mais tarde, relevei a rudeza pois a cerimônia de inumação foi de tanta suavidade que me levou ás lágrimas. Ainda tenho na memória a lembrança de minha sobrinha, aquele anjo de 3 anos jogando pétalas de rosas sobre o esquife que descia em meio a cânticos de esperança entoados pelos presentes.
Antes desse primeiro contato físico, já havia experimentado a brisa fria que seu manto causa quando passa por nós com pressa. Ela vivia correndo atrás de meu pai e ele, por algum tipo de característica que até hoje desconheço, sempre se desviou, como um toureiro evita a estocada do chifre taurino. Meu pai, fumante, boêmio, sedentário, estressado, cinco filhos, introvertido, mas de uma presença e bom-humor inigualáveis, tinha alguma leveza ou flexibilidade que driblava a morte como ninguém. Mas não sem sustos. Passou um período de mais de um ano recebendo periódicas visitas da morte que nunca conseguia levá-lo além dos hospitais coronarianos. Até que, miraculosamente após uma cirurgia dupla de safena, ela desistiu. Ele havia ido para São Paulo, de ônibus, para consultar um médico referência no tipo de mal que o afligia. Ao chegar ao consultório e após as primeiras perguntas da anamnese, o próprio médico, incrédulo, indagou: “Como o senhor conseguiu chegar vivo até aqui!? E de ônibus!? Vou interná-lo agora mesmo!” E assim foi. Internou-o, trocou alguns tubos de irrigação velhos por outros mais novos e pronto. Meu pai voltou para casa são. Hoje, continua boêmio, com cinco filhos, estressado e introvertido, mas parou de fumar, como uma afronta a morte que desistiu de agarrá-lo.

Apesar de acompanhar seus feitos através dos jornais quase que diariamente, a última chance que tivemos de nos encontrar em público foi na despedida da mãe de um grande amigo. Acho que a morte gosta dessas cerimônias que fazemos em homenagem aos finados. Parece-me que ela toma-as para si, como a apoteose de sua conquista. De certa forma, honrar a pessoa que se vai é lembrar-se daquela que a levou. O que muda é a polaridade desses sentimentos dentro de cada um de nós.

Essa proximidade que construímos ao longo do tempo fez-me crer que a morte, apesar de ser comprometida e trabalhadora, é também vaidosa e megalomaníaca. Principalmente entre povos que não dão muito crédito de que ela seja o fim de tudo, a morte tenta marcar fundo sua presença, arrebatando vidas em grandes quantidades a cada ceifada. É comum vermos acidentes na China e na Índia, nações cuja filosofia há muito descobriu a relatividade da morte, em que almas são levadas aos milhares. Um esforço prático para marcar sua importância.

E sua vaidade confirmo no fato de senti-la neste momento, suspirando onipresente por trás de meus ombros, lendo essas linhas e esperando que eu acabe este texto com alguma exortação ou declaração de amor. Cuidadoso que sou, termino o texto agora mesmo abençoando-a com a ignorância sobre minhas intenções. Se gosta ou não, se me leva ou não, não importa. Fato é que, mais cedo ou mais tarde, estaremos juntos com um propósito real. Mas até lá, prefiro acompanhá-la ao largo e me refestelar nas experiências que sua irmã Vida tem a me oferecer.