25 de abril de 2012

Blues da Colisão

Dois carros, contra-mão
Nenhum guarda na esquina
Farol alto, solidão
Cegos de nossa própria sina

Até que veio a colisão
O vidro todo espatifado
Sangue para todo lado
E curiosos de plantão
Condenado à eternidade
À morrer só de saudade
Sufocando o coração

Deixando a rua engarrafada
Não podemos fazer nada
Contra essa confusão
Seguindo nos atropelando
Odiando e nos amando
Até o próximo esbarrão

Mas alguém tem que dar um jeito
Sei que não vai ser perfeito
Puxo o freio de mão
Te deixo ir com nosso amor
E vejo no retrovisor
Você sumir na contra-mão

19 de abril de 2012

O Mágico


A vida que ensina é a mesma que cobra
Fatura esquecida, de juros se dobra
E se na bolsa sem soldo, vive a mosca a zumbir
Senão escorpião com ferrão a brandir
Pagamos o preço a peso de lágrima
Com a vida que sobra depois de cair

Foi assim com o mágico, há muito aplaudido
Visitando as cidades de segredos munido
Arranca risada, bochecha rosada
Um susto e mil gargalhadas
Ficou famosa a carreira e muito espantou
Que belo espetáculo, que grande alarido

Montava palco e tenda na praça
Cartola crivada, cheio de graça
Bigodes em cera, fraque imponente
Alçado mais alto do que toda a gente
Vinham-se todos assistir à grandeza
Vendia-se refresco e muita aguardente

Coelhos surgiam e pombas voavam
Cartas sumiam e lenços dançavam
Não se queimava em vela ou em pira
E boquiaberta a audiência assistira
O brotar do buquê entre dedos trementes
Que olhos notavam a linda mentira?

Que povo iludido, querendo mais
Pensava o mágico, artista em cartaz
Se com engodo sou-lhes deidade
Imagine se lhes trouxer a verdade
E antes do gran finale
Revelou o truque sagaz
para espanto de todos naquela cidade

Pateta, sorriu do palco esperando
A chuva de palmas, o riso ou o pranto
Mas o que se ouviu foi puro silêncio
A platéia abalada em grave consenso
De que o mágico prestara mau serviço
Era melhor velando, diria o bom senso

Cigarras cantaram, mugiu uma vaca
Numa obra bem longe batiam estaca
Enquanto a platéia em silêncio indagava
Então era isso, só mais um embuste
Charlatão, gritou um, cafajeste
Perdemos tempo com essa bobagem
E uma faca voou girando na haste

E era afiada, a maldita lâmina
Pregou-se à barriga, sangue a verter
Morreu o pobre mágico, estripado
Por ter simplesmente revelado
O que ninguém queria saber
Por trás da pantomima do defunto estatelado

E como deixei lá em cima uma pista
Poderia ter feito uma lista
Das coisas que a vida me fez entender
E outras que à morte irei esquecer
Que se morre o artista por mostrar a verdade
Desviam a vista despreparados para ver

E as vacas seguem mugindo
E as estacas seguem batendo
Enquanto morrem lindos mentirosos
E outros novos vão nascendo
Até que os peguem na verdade
Porque deles só mentira se espera
A platéia feroz, aturdida
A platéia feliz iludida

13 de abril de 2012

Bandeja de Prata


A mulher entrou no restaurante e, logo abordada pelo maitre atencioso, pediu uma mesa. Para um, respondeu educadamente à pergunta padrão dos maitres atenciosos. Perto da janela, por favor.

Mal sentou-se e um garçom apareceu trazendo um copo d'água alto e cheio até a metade, ou meio vazio, conforme a preferência do leitor. A mulher, porém, faminta, nem reparou na água nem na rosa branca quase desabrochada e repolhuda que boiava num recipiente, este sim, quase a transbordar no meio da mesa. Esgueirou-se atrás do cardápio cerrando os olhos como uma leoa à caça. Virou e revirou as poucas páginas em dúvida e intimou, Vou querer este.

Poucos minutos depois chega uma grande bandeja de prata coberta por uma cúpula reluzente. Posicionando tudo à frente da mulher o garçom destampa a refeição desejando "Bon appetit".

A mulher, salivando, nem percebe a salada e tudo o mais que é posto à mesa em volta da rosa flutuante. Forra o colo com o guardanapo branco para que o molho ainda morno não lhe macule a roupa e à primeira garfada chama logo o maitre novamente. Está frio. Mil desculpas, diz o maitre exagerando nos floreios e chamando estrepitosamente o garçom, dando-lhe um sermão com os olhos.

Voltando com a refeição, provavelmente uma nova peça dada quantidade de dígitos que custa cada prato daquele restaurante, nunca requentariam, o garçom reposiciona a bandeja e aguarda alguns instantes até que a cliente aprove com algum breve soslaio, um olhar carinhoso ou apenas um menear de cabeça afirmativo. Como nenhum sinal de desaprovação aflorou enquanto observava, o garçom achou desnecessário ali continuar e retirou-se para o atendimento de outra mesa.

Satisfeita, apesar de ter deixado alguns nacos ensanguentados no prato, a mulher põe os talheres de lado e pede a conta. Durante o angustiante silêncio que existe entre a digitação da senha do cartão refeição e a máquina cuspir a confirmação do pagamento a mulher diz: Meus parabéns ao chef. Foi o melhor frais cœur humain sur des plateaux d'argent que já experimentei.

E sai.

4 de abril de 2012

Hoje


Hoje acordei cedo
peguei tua mão e pusemos pés na estrada
o sol saía calmo e lento no horizonte
o dia todo a nossa frente
Tanta coisa a acontecer
eu, tu e o futuro
mesmo de longe consigo ver

Hoje não importa cada passo
e sim a vontade, o caminho a percorrer
agora o sol nos inspira
estará sobre nós ao meio-dia
quanto maior a nossa sombra
mais certa a alegria

não sei bem o que nos espera
mas o que importa?
o caminho que fazemos na Terra
é uma linha reta
mesmo que torta