12 de abril de 2018

Truman Capote, o escritor horizontal

Abril chegou e com ele nos aventuramos a falar sobre mais uma grande estrela da constelação literária. Dessa vez seguiremos a trilha de Truman Streckfus Persons ou, como ficou mundialmente conhecido por suas matérias jornalisticas, roteiros, ensaios, pecas de teatro, contos e romances, Truman Capote.

Americano New Orleans, começou a escrever aos onze anos em 1944. Com dezenove anos, ganhou o Prêmio O. Henry com o conto "Miriam", posteriormente editado na coletânea 20 Contos, da Cia das Letras (tambem disponível no blog Quinta do Conto) e voltou a ganhar o mesmo prêmio em 1949, dessa vez com "Fechar a Ultima Porta". Mas em 1948 ele já chamava atenção após o lançamento de seu primeiro romance "Other Voices, Other Rooms". Talvez seu romance mais célebre seja "Bonequinha de Luxo", que, em 1961, virou filme estrelado pela namoradinha dos Estados Unidos, Audrey Hapburn, mas a obra que alçou-o ao estrelato literário foi "A Sangue Frio", um livro que reconstitui de forma documental o assassinato de uma família em Kansas. Este livro foi revolucionário pois inaugurou uma nova categoria: o jornalismo literário.

Antes mesmo de se dar conta de que seria um escritor, Capote escrevia para participar nos concursos do jornal Mobile Press Register que aconteciam aos sábados num clube próximo ao seu dentista, sempre regados a muito refrigerante grátis. Se inscreveu pela primeira vez com o conto, "Old Mr. Busybody", um roman a clef baseado em um escândalo local. Logicamente, após terem lido e ficarem cientes do que se tratava, não foi premiado. Porém não desistiu e, com apoio e incentivo de sua professora de inglês do ginásio, seguiu escrevendo.

Somente aos quinze anos percebeu que queria ser escritor e começou a enviar contos para revistas e publicações trimestrais. Aos dezessete, seus primeiros três trabalhos foram aceitos, o que o deixou "tonto de excitação". Iniciou,  portanto, escrevendo contos e, sobre eles, sua opinião era semelhante a Faulkner e outros.

O conto parece ser a mais difícil e disciplinadora forma de prosa que existe.

Sua apurada técnica deveu-se muito `a pratica desse formato e concluiu que, para se chegar `a forma natural de uma história, o autor deve se perguntar se há outras formas de imagina-la, se aquela é realmente a sua forma absoluta e final. Para melhorar a técnica, Capote não tem dúvidas.

O trabalho é o único expediente que conheço.

E acrescenta, comparando a escrita com a pintura e a música.

A arte de escrever possui leis de perspectiva, luz e sombra. Se a gente nasce conhecendo-as, ótimo. Se não, devemos aprende-las.

Mais tarde outras figuras seguiram a estimulá-lo, como foi o caso da editora de ficção da revista Mademoiselle, a editora da Random House e da Harper`s Bazaar, todas publicações para as quais Capote contribuiu. Escrevia e era pago por seus textos. Por isso, escrevia com extrema diligência.

A minha mente zumbia todas as noites, a noite toda, e não creio que eu haja realmente dormido durante vários dias.

E, para manter o ritmo, recorria a doses de bourbon e uísque, cujas garrafas mantinha escondidas numa maleta enfiada no armário. Quando dava a hora do jantar, mastigava algumas pastilhas para disfarçar o hálito e se juntava aos parentes `a mesa. Porém, seus silêncios e olhos embaciados acabaram por acusar-lhe e, apos um pequeno desastre, terminou por suspender este subterfúgio ou, ao menos, diminuir a frequência com que dele se valia.

Mas todo esse esforço era recompensado pelos pagamentos que recebia.

Sou, com efeito, incapaz de escrever coisa alguma que eu não ache que me sera paga.

E não negava gostar da pressão do prazo de entrega de seus originais, o que lhe fazia bem.

Capote, como dito, criou a Jornalismo Literário, seu estilo característico. Mas bebeu de fontes comuns a outros escritores. Entre suas influencias estão Flaubert, Maupassant, Mansfield, Proust, Chekhov, Wolfe e Dickens. Porem, creditava sua construção `a sua própria imaginação, um estado em que chegava depois de colocar para fora tudo o que tinha.

Meu método de ficção é igualmente imparcial: emocionalmente, faz-me perder o controle de escrever; tenho que exaurir a emoção antes de de sentir-me em estado clinico que me permita analisar bastante o estilo e planeja-lo e, quanto ao que me diz respeito, essa constitui uma das normas para se conseguir uma técnica verdadeira. Se minha técnica parece mais pessoal é porque depende da area mais pessoal e reveladora do artista: a alma."

Para Capote, o estilo é o espelho da sensibilidade do artista muito mais do que o conteúdo de sua obra. No entanto, a posse ou a construção desse estilo, não raro, é um desafio, podendo se tornar um estorvo, uma forca mais negativa do que positiva a restringir a forma ou adaptar o conteúdo `a forma. No fundo, apenas o estilo não faz de alguém um grande escritor.

Seu processo criativo, no entanto, era bem peculiar. Sua primeira missão era escrever um rascunho em papel `a lápis. Depois, revia o rascunho e, a partir dele, rascunhava uma segunda versão também `a lápis, mas em papel amarelo, dessa vez. Com o segundo rascunho em mãos, costumava deitar-se na cama e, equilibrando sua maquina de escrever sobre os joelhos, datilografava um terceiro rascunho, dessa vez em um outro tipo mais especial de papel, também amarelo. Afirmava datilografar 100 palavras por minuto.

Sou um autor completamente horizontal. Não consigo pensar a menos que esteja deitado, na cama ou num sofa, com cigarros e cafe ao alcance da mão. Na medida em que a tarde avança, passo do cafe para chá de hortelã, de xerez para martinis. Não, não uso maquina de escrever. Pelo menos no começo. 

Com o terceiro rascunho datilografado e pronto, deixava-o de lado por alguns dias e retomava-lo em uma leitura a mais fria possível, de preferencia em voz alta. Testava o rascunho compartilhando com amigos próximos para colher algumas opiniões de pessoas confiáveis. Por fim, feitas as ultimas alterações, este último rascunho vira o texto definitivo novamente na maquina de escrever, dessa vez sobre papel branco.

Segundo o autor, a historia nunca estava completamente pronta na cabeça ao início da escrita, ao contrário, via tudo de relance. Para ele, o desenrolar de uma historia, seu principio, meio e fim ocorria simultaneamente em sua cabeça e gostava das surpresas e reviravoltas com as quais se deparava ao escrever.

Graças a Deus, devido `as surpresas, aos volteios, a frase que surge, do nada, no momento exato, constitui os dividendos inesperados, aquele pequeno e deleitoso empurrão que faz com que o escritor prossiga.

Sobre criticas, Capote aceitava as de pessoas próximas cuja opinião prezava. Se mantinha alheio `a critica literária, porem acompanhava as que eram positivas. Nunca se rebaixar respondendo a um critico era uma das muitas coisas que não se permitia fazer, talvez uma das mais sensatas entre tantas outras um tanto quanto curiosas.

Jamais telefono porque o numero de seus telefones multiplicados, formam algarismos que não dão sorte. Ou então não aceitarei um quarto de hotel por essa mesma razão. Não suporto a presença de rosas amarelas - o que é  triste pois são as minhas favoritas. Não permito três guimbas de cigarro no mesmo cinzeiro. Não viajarei num avião em que haja duas freiras. Não começo nem termino nada numa sexta-feira. É  infindável o numero de coisas que não posso fazer e que não faço. 

Capote faleceu em 1984 nos deixando dois romances inacabados. O primeiro, Answered Prayers - an unfinished story, fez parte de um contrato com a editora Random House, em 1966, no qual Capote comprometeu-se em escrever em dois anos, mas ate a sua morte ainda não havia sido finalizado. O livro foi finalmente publicado em 1986. O segundo, um romance sobre uma garota rica de Nova Iorque que se apaixona por um manobrista de estacionamento, foi descartado pelo autor em 1940. Um dos empregados da casa onde morava ficou com os papeis que, depois de sua morte, foram descobertos e publicados sob o titulo de Travessia de Verão, em 2005.

Para os que não conhecem a bibliografia de Capote, recomendo os livro abaixo e que também assistam o filme lançado em 2005, estrado pelo excelente Philip Seymour Hoffman.

20 Contos de Truman Capote - coletania do estilo que mais o desafiava, incluindo o conto Miriam, seu primeiro texto premiado - https://amzn.to/2EFuQGH

A Sangue Frio - sua obra de referência cuja estrutura e estilo o catapultaram ao estrelato literário - https://amzn.to/2IPf9Pw

Bonequinha de Luxo - a vida da magnata ingênua Holly Golightly, interpretada no cinema por Audrey Hepburn - https://amzn.to/2qspYiQ

Travessia de Verão -  último livro publicado do autor, porem um dos primeiros romances por ele escritos - https://amzn.to/2GXimjm

22 de fevereiro de 2018

Faulkner e a ocupação de Escritor

Neste post vamos falas sobre William Faulkner (1897 - 1962). Confesso uma ponta de orgulho para tratar desse autor de máxima envergadura literária, um dos pontos mais brilhantes da constelação de estrelas que paira sobre o Império das Letras.

Comecemos pelo óbvio. Faulkner ganhou um Nobel de Literatura (1949), dois Pulitzer de Ficção (1955 e 1962) e dois National Book Awards (1951 e 1955). Com essas credenciais e já estabelecido como grande escritor, foi entrevistado em 1956 pela revista Paris Review sobre sua rotina na literatura, como concebia seus romances e personagens e o que poderia dizer a novos escritores.

Faulkner era um sujeito tímido e introspectivo oriundo do Sul dos Estados Unidos e que preferia a companhia dos simples `a das rodas de literatos que um dia começou a frequentar. Se dizia um poeta fracassado, o que levou-o a escrever romances. Sua obra, apesar de muito elogiada pela critica, não teve tanto sucesso com o publico geral. No entanto, nunca deu importância `a critica.

A unica responsabilidade de um escritor é com a sua própria arte. O artista não tem tempo para dar ouvidos aos críticos. os que desejam ser escritores leem os críticos, os que querem escrever não os leem. O artista esta um furo acima do critico, pois o artista esta escrevendo algo que fara o critico funcionar. O critico esta escrevendo algo que afetara todo mundo, menos o artista.

Segundo o autor, a energia de um escritor deveria ser completamente direcionada `a escrita, levando a pratica `a perfeição. Não raro reescrevia completamente seus livros depois de escritos, levava-se ao extremo da técnica, sempre sabendo que poderia escrever melhor do que já havia escrito, tentando achar seu limite. Reescreveu seu grande romance Som e Fúria (1929) cinco vezes, cada uma abordando o olhar de um personagem sobre a mesma historia. O autor diz ter chegado `a versão definitiva apenas apos o livro já ter sido publicado.

Sobre seu processo de criação, dizia "O trovejar e a musica da prosa se processam no silencio. E dava especial atenção a sua técnica, afirmando que "Não havia atalhos". Procurava criar personagens verossímeis em situaçoes tocantes e criveis, da maneira mais viva que fosse possível. Ao escritor, afirmava que deveria possuir três coisas: Experiência, Observação e Imaginação. Mas que possuindo duas dessas características, ou as vezes apenas uma, poderia suprir a falta das demais.

Para ele, a maior qualidade que um artista deve possuir é a objetividade para julgar o seu trabalho, alem da honestidade e da coragem de não enganar a si próprio a respeito dele. Para Faulkner, escrever era tao importante e necessitava de tanta dedicação quanto qualquer outra profissão, seja de cirurgião ou pedreiro e dizia julgar seus trabalhos baseados na angustia e sofrimento que o causaram, já que nenhum deles atingiu os padrões que ele mesmo havia estabelecido.

Um tanto quanto perfeccionista, Faulkner teve como grande incentivador Sherwood Anderson e escreveu utilizando a técnica de fluxo de consciência, inaugurada por Proust e utilizada também por James Joyce e Ezra Pound. Posteriormente essa técnica foi levada `a poesia pela Geração Beatnik de Allen Ginsberg e Jack Kerouak. Dizia não sair de casa sem uma copia de Shakespeare num bolso e do Velho Testamento noutro e dizia não ler os seus contemporâneos, mas Charles Dickens, Flaubert, Balzac, Cervantes, os russos Dostoiévski e Tolstói, e, claro, Shakespeare. Este ultimo considerado a grande referencia, cuja obra superou seu próprio nome.

Se eu não tivesse existido, algum outro teria escrito meus livros: Hemingway, Dostoiévski, todos nos. A prova disso é que ha cerca de três candidatos para a autoria das pecas de Shakespeare. Mas o que é importante é Hamlet e Sonho de Uma Noite de Verão: não quem escreveu, mas o fato de alguém o ter feito. O artista não tem importância. Só é importante o que ele cria, já que não existe nada de novo para ser dito. Shakespeare, Homero, Balzac, todos escreveram acerca das mesmas coisas e, se eles tivessem vivido mil ou dois mil anos, os editores não teriam, desde então, necessidade de mais ninguém.

Afirmava que não apenas cada livro deveria ter um propósito, mas que toda a soma do trabalho de um artista também deveria tê-lo. E, para finalizar, William Faulkner nos brinda com seu conselho aos aspirantes a escritores.

Sempre sonhe e aspire a mais do que aquilo que sabe que pode fazer. Procure sempre ser melhor do que você mesmo; não se preocupe com seus contemporâneos ou seus antecessores. (...) O que eu escrevo tem que agradar-me. Se não me agrada, falar sobre isso não o melhorara em nada. A unica coisa que fara melhorar o que escrevo é trabalhar ele um pouco mais. Não sou literato, sou apenas escritor.

A obra de Faulkner muitas vezes foi adaptada para o cinema e, recentemente, seu grande livro Som e Fúria (1929) foi adaptado pelo ator e diretor James Franco. Para conhecer mais a obra do autor, seguem abaixo algumas referências.

Toda a Saga Yoknapatawpha:
- Sartoris (1929) - http://amzn.to/2ojjLpf
- Som e Fúria (1929) - http://amzn.to/2HF1RFF
- Absalão, Absalão (1936) - http://amzn.to/2HD3sM7
- Os Invictos (1938) - http://amzn.to/2EJUC1c
- Desça, Moises (1942) - http://amzn.to/2EWChxg
- Requiem para uma Freira (1951) - inédito no Brasil

E a Trilogia Snopes
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19 de fevereiro de 2018

Os 4 estágios da escrita

Se existiu alguém que conviveu de perto com grandes escritores, seu nome é Malcolm Cowley. Ele foi editor da renomada Paris Review e coordenador de diversas edições com entrevistas e conversas com escritores do calibre de Hemingway, Faulkner, Ezra Pound e muitos outros.

Decantando todas as metodologias que levantara desse convívio, nosso amigo Cowley nos presenteou com esse resumo que ele chamou de 4 Estágios da Escrita. Vamos a eles:

1 - CONCEPÇÃO: O gérmen da história nasce de um flash, um momento a primeira vista sem importância que, de alguma forma, se instala no subconsciente. No momento em que reconhecemos esse flash, temos a sensação de que poderíamos escrever uma história sobre ele. Um momento fugaz, uma singeleza que nos capta atenção e se encasula em nossa mente.

2 - INCUBAÇÃO: É o tempo do qual aquele flash precisa para se desenvolver, tempo de meditar sobre ele mesmo inconscientemente, um período gestatório em que nos distanciamos e voltamos ao tema durante outra atividades corriqueiras. Durante esse período, o escritor se pergunta quais as características dos personagens, como abordar o inicio da historia, como chegar ao seu clímax, como desenhar seu desfecho. É um processo ao mesmo tempo consciente e inconsciente como se um grito das profundezas do sono pudesse ter seu eco ouvido e revisto durante a vigília.

3 - PRIMEIRO RASCUNHO: A primeira versão da história geralmente é escrita em alta velocidade, é o melhor jeito de escreve-la. Nesse momento não importa a forma, a grafia, a pontuação, tudo sai de forma espontânea, qualquer coisa vale! Alguns autores tem métodos mais sofisticados, conseguem uma versão quase completa já no primeiro rascunho, mas usualmente, o primeiro texto é um diamante bruto.

4 - REVISÃO, REVISÃO, REVISÃO: Se há um consenso entre todos os escritores é sobre a importância da revisão. Alguns gastam pouco tempo, outros continuam revisando e escrevendo mesmo depois de o livro ser impresso. O trabalho de burilamento do texto é importante para celebrar a função de cada palavra e cada frase, ter certeza de que estão posicionadas de forma a gerar o resultado que o autor deseja.

E então? Preparado para colocar no papel suas inspirações?
Não esqueça de compartilhar conosco. Esperamos ansiosos sua contribuição!

2 de fevereiro de 2018

François Mauriac e o êxito em ser escritor

François Mauriac foi escritor, cronista, jornalista e poeta francês premiado com o Nobel de Literatura em 1952. Segundo Otto Maria Carpeaux "o maior representante do romance psicológico da tradição francesa". Segundo o próprio Mauriac: "um metafisico que trabalha com o concreto".

Escreveu dez romances entre 1920 e 1932, entre os mais celebres estão Le Baiser au Lepreux (1922), Genitrix (1923), Therese Desqueyroux (1927) e Le Noed de Viperes (1952) e também sobre as vidas de Racine (1928) e Jesus (1936).

Mauriac foi entrevistado para a revista The Paris Review onde compartilhou um pouco de sua técnica e sugestões para escrever romances e outras obras. Sua maior contribuição foi em relação a técnica, a qual legava a cada escritor a aventura de descobrir ou inventar a sua própria, e disse:

"Todo romancista deve inventar sua própria técnica (...). Cada romance digno de tal nome é como outro planeta, que seja grande ou pequeno, com suas próprias leis, assim como possui suam flora e sua fauna. Assim, a técnica de Faulkner é certamente melhor para pintar o mundo de Faulkner, sendo que o pesadelo de Kafka criou seus próprios mitos, que o tornam comunicável."

Assim, trata-se de o escritor criar ou descrever um universo próprio onde a ação de seu romance transcorre, seja ele próximo ou não da realidade como a conhecemos. O importante seria criar um estilo próprio, uma forma individual para contar a sua história, pois só o escritor pode saber o que e como tudo acontece, por isso recai sobre ele a responsabilidade de criar, executar e destruir conforme a história a ser contada.

Como criador deste universo que existe em cada romance, a tentação de interferir diretamente nos destinos dos personagens é constante. Porém, o desenrolar natural da história deve ser considerado para dar-lhe certa legitimidade com a realidade, pelo menos o que se considera real no universo criado pelo autor. Mauriac escrevia espontaneamente ou, segundo ele "com completa naiveté" - deixando-se livre de qualquer ideia pré-concebida do que se pode ou não fazer.

"Quando começo a escrever não me detenho a refletir se estou interferindo demais diretamente na historia, se sei demais a respeito de meus personagens e se deveria ou não julga-los.(...) Em geral, quando começo a escrever, nem todos os pontos importantes do enredo estão estabelecidos."

Mauriac aponta que experiencia de vida é fundamental para a escrita de qualidade. Observar os acontecimentos da própria vida com certa distancia faz com que o escritor tenha bagagem para utilizar em seus textos e dar a eles mais veracidade e credibilidade. De muitas formas, o autor é em parte o personagem, seja o protagonista ou o vilão, até mesmo um secundário que leva uma característica peculiar. Os ambientes, tendem a ser ambientes já conhecidos, consolidados na memoria. Essas "lembranças do passado" como se refere o autor, dão profundidade ao texto e levam o leitor a viver junto com o autor os sentimentos descritos. Por isso, Mauriac diz que o autor jovem, exceto poucas exceções, "quase não tem possibilidades de escrever com exito a cerca de qualquer outro período de sua vida a não ser sua infância e adolescência". Mas termina, do alto de sua experiência e gloria dizendo que todos os seus romances "tem lugar no período de minha adolescência e juventude, são `lembranças de coisas passadas".

Sobre a escrita em si, Mauriac nos urge a sermos nos mesmos e nos darmos com afinco a nossa obra a ponto de tornar as demais e anteriores obsoletas, desnecessárias.

"O primeiro dever de um escritor é ser ele próprio. O esforço de auto-expressão deveria afetar sua maneira de expressão. Jamais comecei um romance sem que esperasse que ele tornaria todos os outros desnecessários. Minha obra-prima saria sempre o romance que estou trabalhando agora".

Isso levaria ao grande êxito do escritor e a coisa mais rara na literatura: "quando o autor desaparece e sua obra permanece."

Mauriac em sua prosa refinada, nos deixou grandes lições e romances.
E para nosso deleite, uma das poucas obras traduzidas para o português do autor para que nunca esqueçamos de seu esforço tão bem recompensado.

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10 de janeiro de 2018

Cony nos deixa

Esta semana perdemos um dos mais prolíficos e competentes escritores nacionais, Carlos Heitor Cony não nos faz mais companhia, mas nos deixa um legado de romances, cronicas e contos que ficaram indeléveis na memória deste Império das Letras.

Nos idos de 1998, quando a própria Internet dava seus primeiros passos, Cony participou de um chat no UOL, coisa das mais inovadoras na época. Funcionava como uma roda de conversa, onde cada um postava sua pergunta e o convidado escolhia as que mais lhe interessavam para responder.

Comparado ao dinamismo das trocas de mensagens atuais, o chat do UOL pode ser considerado já um dinossauro, porém Cony, em sua egrégia humildade, fez o melhor que pode para responder a quem lá esteve. Vários assuntos foram abordados como politica, religião, literatura e até setters irlandeses, sua raça de cães preferida. Mas, dentre os assuntos por ele abordados, pinçamos as respostas mais importantes para nós, iniciantes nas Letras.

Perguntado sobre poesia, Cony responde:

"Num panorama geral, incluindo nacionais e estrangeiros, Machado de Assis, Sartre, Dostoiévski, Goethe, Dante, e os latinos, quase todos, poetas e prosadores."

"Aprendi a gostar dos poetas latinos (Horácio e Ovídio, principalmente) o que me levou a admirar os clássicos. Dante, Camões, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Verlaine, estes estão entre os meus preferidos."

Perguntado sobre a Paixão e ate que ponto suas narrativas são autobiográficas, eis sua resposta:

"Evidente que todas as paixões e quebrações de cara dos meus livros tiveram equivalências na minha vida pessoal. Acredito que a paixão é o câncer do amor, ou seja, explode desordenadamente dentro da gente e não controlada, provoca metástase que nos leva à destruição."


"No meu primeiro livro, "O Ventre", o pai era um corno que termina louco de dor. Em "Matéria de Memória", o pai é um vilão que termina leproso e amaldiçoado pelos filhos. Em "Pessach: A Travessia", o pai é um judeu covarde que se suicida com medo de viver. Como vc pode notar, nenhum destes pais pode ser o meu. Em todo caso, isso não significa que o pai de "Quase Memória" seja exatamente o meu."

E também falou sobre a melancolia de seus personagens:

"...é muito comum os autores de romances, novelas e teatro matarem seus personagens principais, Considero isso uma solução fácil e banal. Por isso mesmo, condeno meus personagens à melancolia que eu acho muito mais humana e verdadeira do que a morte. É uma escolha pessoal minha. Agora mesmo,ao terminar meu último romance, tudo me levava a matá-lo. Ele era velho, doente, desencantado. Se eu o matasse, seria misericordioso demais. Deixando-o viver, acredito que melhor retratei a sua solidão e a sua tristeza."

Mais a frente, perguntado sobre que assuntos escrever que possam gerar interesse, Cony responde:


"...há uma frase muito citada de Tchecov: escreva sobre a tua aldeia e descreverás o mundo. (...) Encontre o seu espaço e entre firme no assunto."

E, finalmente, Cony é questionado sobre sua forma de motivar-se em um cenário em que pouco se lê. O que o incentiva a escrever tanto? Ao que ele responde:

"...escrever é um ato pessoal e solitário. A gente escreve por uma necessidade interior que independe do consumo. Passei 23 anos sem escrever e confesso que a literatura não me fez falta. Agora, nunca penso no leitor nem em ninguém quando estou fazendo um romance. No jornalismo, ao contrário, o leitor sempre está presente de uma forma ou outra naquilo que escrevo."

Sempre é triste perder uma voz tão ativa e delicada. Ainda bem que Cony nos deixa uma grande obra que pode ser sempre revisitada. Abaixo seguem alguns de seus trabalhos mais icônicos, para quem ainda não conhece e para aqueles que, na lembrança, possam matar a saudade. O autor nos deixa, fisicamente. Mas também nos deixa muito para que possamos nos deliciar.

O Ventre - primeiro romance do autor, publicado em 1955 - http://amzn.to/2qUmedI

Quase Memoria - Publicado em 1995 e ganhador do Premio Jabuti - http://amzn.to/2CYNLjF

Pilatos - publicado em 1973, uma critica satirizada da ditadura militar - http://amzn.to/2mingu6

Romance sem Palavras - obra que rendeu ao autor outro Premio Jabuti, em 2000 - http://amzn.to/2FlN41r

A Casa do Poeta Tragico - mais um romance a lhe render um Premio Jabuti - http://amzn.to/2FnOFDH