26 de setembro de 2019

Nada muda nessa quarta-feira

Com uma carta, de peito partido
não se adivinhou o que vinha à esteira
daquelas lágrimas de crocodilo,
dos dentes descansando à cabeceira,
dedos agudos trêmulos de ansiedade
não escondiam o tom de brincadeira.
Ex-amigos ao redor do ataúde,
enquanto o velho sentava à cadeira,
"um novo futuro desaponta"
bradavam coçando a algibeira
de olho no soldo na conta

nada muda nessa quarta-feira

O vento do leste espalhou papeis os sobre a mesa.
Alguém correu à janela para ver a quebradeira
 e o que manteve a vela acesa
virou bode e expiou rolando a ladeira.
Nem adiantou a tristeza
pois que as ruas já eram caldeira
 sangrando sob a histórica firmeza,
entre gás e pau e o abismo à beira,
entregou ao capataz a mão da princesa,
derrotou-se o suor, nossa canseira
matou o passado, a bondade e a beleza
e enterrou seus mortos no barro da atoleira.
A pátria, cambaleante e já ciente da aspereza,
foi chão com o escuro à dianteira.
E o fim vestiu-se de começo, um novo ciclo de torpeza
com discursos de insulto e asneira
sequestrou a esperança e, com destreza,
trouxe consigo os baixos, iludidos de terceira
retirou-se do sábado a singeleza
e nada muda nessa quarta-feira.

Quedou-se o mundo estupefato:
escorregava nosso chão pela estribeira
o colosso perdido coberto de mato
filial agora da matriz norteira
roçando-lhe a perna como um gato
caíra na lábia lisonjeira.
E ainda será o primeiro ato
em que se locupleta essa fauna rasteira
não haverá motivo por estar-lhes grato
enquanto queimarem nosso lenho à lareira.
 
Quando houver novamente sol alto
por mais que ainda haja peneira
me acorde então pois não falto
ao som da criança trigueira
ao terceiro sinal do teatro
dando adeus à farsa caseira
no calor de um domingo de asfalto
pois nada muda numa quarta-feira

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