3 de setembro de 2010

Presença

Tenho certeza que já estive com a morte. Não a vi, na verdade, mas estou certo que ela já me viu e consultou seus alfarrábios infinitos sobre minha posição na lista de reservas no Descanso Eterno.

A primeira vez que compartilhamos o mesmo recinto foi lá em casa. Eu não a convidei, ela apareceu de surpresa. Tinha um compromisso marcado já há algum tempo com a minha avó, que não conseguiu nos avisar com antecedência devido às seqüelas de um derrame. Eu ainda era criança, uns seis ou sete anos e estava dormindo na hora que ela chegou. É certo que me viu pois o caminho da porta de entrada lá de casa até o quarto da vovó passava necessariamente pelo meu. Eu, que sempre dormi de porta aberta até chegar à adolescência, não devo ter despertado seu interesse na época. Ela tinha coisas mais urgentes para resolver. No dia seguinte, e ainda ignorante do acontecido, fui para a escola me sentindo mal com dor de barriga. Pedi à professora para ir embora e ela me levou à coordenação de onde ligaram para a minha casa. Meus pais atenderam e disseram que não poderiam me pegar naquele momento, certamente atabalhoados com as providências necessárias para completar o trabalho começado pela funesta visita. No fim das contas, a passagem dela, mesmo que só resvalando na minha existência, já me causou complicações.

Certamente estive próximo dela outras vezes em situações associadas a meus avós. Todos bem longevos, freqüentavam assiduamente hospitais. Algumas vezes em urgência, outras apenas corriqueiramente. Nesses hospitais, eu não podia deixar de sentir a presença dela passando pra lá e para cá, como uma formiga diligente. Não chegava a vê-la ainda cara-a-cara, mas percebia o final das barras de seu manto surrado quando virava corredores ou entrava por entre as grandes portas amarelas da UTI.

Numa dessas visitas hospitalares à minha outra avó, entrei no quarto junto com algumas tias barulhentas demais para o recinto e a ocasião. Tinha uns dezoito anos e essa era a avó com que mais compartilhei bons momentos de infância. Ela, deitada na cama, havia feito há pouco um exame onde lhe introduziram um tipo de contraste no sangue para identificar as máculas do fígado. Ironicamente, o próprio contraste causou uma insuficiência no fígado que a levou de nós. Minhas tias disputavam sobre qual filho era mais bem sucedido em sua carreira enquanto minha avó olhava para mim com olhos estranhamente lúcidos e sorria, como a zombar das tias mesquinhas em querela. Não entendi na hora, mas o que ela me disse naquele olhar era “estou indo embora para cima e elas aqui de cabeça baixa”. Peguei na sua mão com a força que merece um abraço de despedida e ela se foi.
Quase caí no chão por conta do esbarrão que a morte me deu ao sair do quarto. Mal-educada, nem pediu desculpas. Mas não tomei pelo lado pessoal e até, mais tarde, relevei a rudeza pois a cerimônia de inumação foi de tanta suavidade que me levou ás lágrimas. Ainda tenho na memória a lembrança de minha sobrinha, aquele anjo de 3 anos jogando pétalas de rosas sobre o esquife que descia em meio a cânticos de esperança entoados pelos presentes.
Antes desse primeiro contato físico, já havia experimentado a brisa fria que seu manto causa quando passa por nós com pressa. Ela vivia correndo atrás de meu pai e ele, por algum tipo de característica que até hoje desconheço, sempre se desviou, como um toureiro evita a estocada do chifre taurino. Meu pai, fumante, boêmio, sedentário, estressado, cinco filhos, introvertido, mas de uma presença e bom-humor inigualáveis, tinha alguma leveza ou flexibilidade que driblava a morte como ninguém. Mas não sem sustos. Passou um período de mais de um ano recebendo periódicas visitas da morte que nunca conseguia levá-lo além dos hospitais coronarianos. Até que, miraculosamente após uma cirurgia dupla de safena, ela desistiu. Ele havia ido para São Paulo, de ônibus, para consultar um médico referência no tipo de mal que o afligia. Ao chegar ao consultório e após as primeiras perguntas da anamnese, o próprio médico, incrédulo, indagou: “Como o senhor conseguiu chegar vivo até aqui!? E de ônibus!? Vou interná-lo agora mesmo!” E assim foi. Internou-o, trocou alguns tubos de irrigação velhos por outros mais novos e pronto. Meu pai voltou para casa são. Hoje, continua boêmio, com cinco filhos, estressado e introvertido, mas parou de fumar, como uma afronta a morte que desistiu de agarrá-lo.

Apesar de acompanhar seus feitos através dos jornais quase que diariamente, a última chance que tivemos de nos encontrar em público foi na despedida da mãe de um grande amigo. Acho que a morte gosta dessas cerimônias que fazemos em homenagem aos finados. Parece-me que ela toma-as para si, como a apoteose de sua conquista. De certa forma, honrar a pessoa que se vai é lembrar-se daquela que a levou. O que muda é a polaridade desses sentimentos dentro de cada um de nós.

Essa proximidade que construímos ao longo do tempo fez-me crer que a morte, apesar de ser comprometida e trabalhadora, é também vaidosa e megalomaníaca. Principalmente entre povos que não dão muito crédito de que ela seja o fim de tudo, a morte tenta marcar fundo sua presença, arrebatando vidas em grandes quantidades a cada ceifada. É comum vermos acidentes na China e na Índia, nações cuja filosofia há muito descobriu a relatividade da morte, em que almas são levadas aos milhares. Um esforço prático para marcar sua importância.

E sua vaidade confirmo no fato de senti-la neste momento, suspirando onipresente por trás de meus ombros, lendo essas linhas e esperando que eu acabe este texto com alguma exortação ou declaração de amor. Cuidadoso que sou, termino o texto agora mesmo abençoando-a com a ignorância sobre minhas intenções. Se gosta ou não, se me leva ou não, não importa. Fato é que, mais cedo ou mais tarde, estaremos juntos com um propósito real. Mas até lá, prefiro acompanhá-la ao largo e me refestelar nas experiências que sua irmã Vida tem a me oferecer.

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