Subi a ravina, perscrutei a campo aberto com as mãos sobre os olhos e lá estava ele. Minha vontade era pular no vazio do abismo que nos separava e agarrar-lhe a crina à unha. Mas, ansioso, dei as costas e desci na intenção de finalmente domar o animal. Conhecendo seu comportamento, dirigi-me ao lago onde, sabia, ele estacionaria quando o sol lhe fustigasse suficientemente o lombo. No caminho, apalpava os bolsos conferindo se tinha todas as ferramentas necessárias para o momento do encontro.
Um dia se passou antes que ele aparecesse. Ouvi seus cascos ao amanhecer, vinha levantando poeira atrás de si e mesmo antes que eu pudesse vê-lo, ele já havia me avistado e vinha arisco, marinado numa noite de receios.
Não me movi enquanto ele se aproximava do espelho d’água arruinando o encontro de lua e sol ao matar sua sede. Num dado momento, moviam-se apenas os astros e aquele pescoço sedento e musculoso.
Fiz menção de mover-me apenas quando percebi que ele estava saciado, mas, como se adivinhasse, levantou as orelhas e bufando deu alguns passos atrás. Levantei-me e ele marchou para mais longe e ficou de lá a fitar-me. Depois de tanto tempo observando-o ao largo e me aproximando aos poucos estava acostumando-o a dividir seu espaço comigo. Já o havia visto pastar, nadar e procriar. Dormir com fome e refestelar-se em forragem. Nesse convívio forçado, abri à fórceps um canto em sua vida, uma presença que começou no canto do seu olho e agora via-me todo e de frente. Ainda sim seu instinto mantinha-o afastado.
Não me importei com seu pinote assim que dei o primeiro passo em sua direção. Nem me assustei quando relinchou alto quando entendeu que eu não pararia. Escolhi aquele momento como derradeiro. Não deixaria aquela besta à solta nem mais um dia. Usaria aquela rebeldia e força a meu favor. Montaria sua velocidade, condicionaria sua potência, regozijaria sua liberdade.
Perto o suficiente, vi em seus olhos mistos de curiosidade e medo minha própria face refletida. Por um instante aquelas órbitas negras e profundas tinham alma e personalidade. Como o sol e a lua enamorando-se sobre o espelho d’água, nossos espíritos deram as mãos quando entreolhamo-nos. Suávamos. Eu por temer não conseguir domá-lo e ele por temer perder sua liberdade. Ainda assim avancei mais um pouco e quanto mais próximos maior o magnetismo.
Estendi a mão e senti sua pulsação ao tocar o focinho áspero. Dei-lhe um carinho e ele carinhosamente quis recebê-lo.
Conhecemos-nos durante a manhã e só quando o sol ia alto no céu eu pude oferecer-lhe freio e cela cuja aceitação foi dócil apesar da desconfiança inicial. Consegui montá-lo muito após o mergulho do sol no horizonte. Não foi fácil para ele acostumar-se com meu peso sobre si, com alguém a guiar-lhe o olhar e os passos; nem para mim conter sua força e vontade, aquele ímpeto de correr e sumir, de fazer o que lhe conviesse a qualquer instante.
Vinha a lua na metade de sua descida, já preparando sua despedida às estrelas quando meus braços perderam o tônus e minhas pernas fraquejaram. Num balanço brusco, mas já não tão brusco quanto os anteriores, caí sobre meu corpo exausto. Ferido, olhei-o imponente, esperando sua fuga. Mas ele permaneceu. Desceu o nariz ofegante e cheirou-me como se a certificar-se de minha vida ou minha morte. Sossegou quando levantei e, naquele instante em que nem sol nem lua dominam o céu, mas o compartilham, montei-o pela segunda vez e, dessa vez, acostumamo-nos. Ele mesmo freando suas vontades e eu gentil no direcionamento.
Combinamos, então, tacitamente, respeito mútuo e, em momentos específicos, nos permitimos deixar-se guiar, da parte dele, ou deixar-se seguir, de minha parte, enquanto o céu se permitia ostentar dois astros simultânea e harmoniosamente.