22 de novembro de 2011

Uma Grande Surpresa

A barriga vazia retorcia-se sob a camisa de Jairo. A tentação do furto era cada vez mais sufocante. Com frequência se deixava convencer da facilidade dessa escolha e da insensibilidade da vítima de dar-se conta da perda. Afinal, espírito virtuoso que sempre fora, escolheria algum lugar de extrema abundância para praticar o delito, justificando-se  no fato de que em lugar que muito há, o pouco que falta não se fará notar.

Protegida a alma sob o escudo da auto-sugestão, lá se foi Jairo emboscar sua presa. Perambulou pela cidade por algumas horas dando uma última chance à caridade humana, ainda lutando intimamente para não sucumbir à sua condição de faminto e, por conseguinte, desesperado, o que só lhe traria confusão ao raciocínio e risco às suas já fragilizadas integridades física e moral.

Como sempre, rumou para o bairro rico repetindo seu lema como um mantra, adepto que era desse tipo de prática zen. Era hora do almoço e o ar recendia à mistura de temperos, carnes e cozidos. Foi um duro golpe à pétrea força de vontade de Jairo que decidiu, então, entocar-se ao lado de uma reluzente garagem e, como uma serpente, esperar a hora certa do bote. Agachado na relva milimetricamente alinhada, Jairo escutou até que o tilintar dos talheres e o gorgolejar dos refrescos carbonatados terminasse, sinal claro de que os moradores já se haviam satisfeito. Movendo-se silenciosamente, entrou por um basculante e encontrou-se no banheiro social da casa. Aproveitou para tirar de si a sujeira, pelo menos aquela que levava às mãos, já que, além da confissão seguida de prece, ainda não inventaram canos e muito menos água, seja ela qual for, e não se deixem enganar pela benta, que leve consigo a sujeira da alma.

Com a confiança e o espírito renovados como só um borrifo de água gelada o faz, saiu do banheiro e andou pelo térreo agora vazio. Era comum naquele bairro que as famílias tirassem a sesta, ainda mais àquela época do ano quando o calor requer um par a mais de horas antes de ser encarado. Portanto, foi Jairo até a cozinha e, das baixelas que descansavam sobre a bancada de mármore posicionada como uma ilha de prazeres no meio da cozinha, fez-se um prato.

Comeu rápido e lambuzou-se. Satisfeito, lavou educadamente a louça sob um fio estreito de água da pia,  evitando que o barulho da ação afetasse a inação dos habitantes do lugar e começou a perambular pela casa vazia. Mexeu nos porta-retratos, cogitou ligar a TV, mas apenas experimentou o poder de ter os controles-remotos nas mãos enquanto espreguiçava na poltrona, folheou as revistas e desmarcou a Bíblia recostada no altar. Era hora de partir, pensou. O ajuste entre excesso e falta havia sido consumado, vingou-se intimamente da sociedade. Voltou então ao banheiro para completar o processo e usar uma das escovas elétricas que la havia junto com o dentifrício que prometia brancos absolutos, mas, como um leão que se joga à savana após encher de zebra ou gazela o bucho, entregando-se a uma indolência que só o poder de seu urro lhe confirma, Jairo aboletou-se ao trono que havia no pequeno banheiro e reinou, não como citado rei dos animais, mas como um homem no máximo de sua própria auto-proclamada majestade.

E ser rei nessas situações requer muito cuidado pois mesmo os órgãos internos podem amotinar-se. E foi o que aconteceu a Jairo, uma vez que ao ver-se naquela situação pretensamente segura mas, no fundo, imensamente delicada ouviu a sirene da revolução soando alto de dentro de seu ventre. E tão fortes retumbavam os tambores lá dentro que despertou a família lá no andar de cima que, prevenida na arte de manter o que lhes era posse, reuniu-se ao topo da escada com as melhores armas que puderam escolher entre as roupas de cama e as meias das gavetas. O mais novo, pela sua própria natureza, era o mais bem equipado levando aberta consigo a lâmina do canivete suíço. Pé ante pé, a família pôs-se escada abaixo numa proximidade corporal só comparável `as falanges espartanas ou aos abraços de Natal, todos ouvindo o gorgolejo gutural que vinha do banheiro de baixo.

Jairo não ouviu nada, preocupado que estava com o próprio estalar de tripas, e nem viu quando a família abria inadvertidamente a porta do banheiro onde, agora, além de ruídos, cheiros indesejáveis também ajudavam a gravar para sempre na memória o espetáculo dantesco que era Jairo, calças aos joelhos, meio corpo para fora, tentando fugir, do banheiro e da vergonha, pelo basculante.

Um comentário:

Anônimo disse...

Final engraçado para uma história que foi construída a partir de um drama.. achei bem interessante...