A barriga vazia retorcia-se sob a camisa de Jairo. A tentação do
furto era cada vez mais sufocante. Com frequência se deixava convencer
da facilidade dessa escolha e da insensibilidade da vítima de dar-se
conta da perda. Afinal, espírito virtuoso que sempre fora, escolheria
algum lugar de extrema abundância para praticar o delito,
justificando-se no fato de que em lugar que muito há, o pouco que falta
não se fará notar.
Protegida a alma sob o escudo da
auto-sugestão, lá se foi Jairo emboscar sua presa. Perambulou pela
cidade por algumas horas dando uma última chance à caridade humana,
ainda lutando intimamente para não sucumbir à sua condição de faminto e,
por conseguinte, desesperado, o que só lhe traria confusão ao
raciocínio e risco às suas já fragilizadas integridades física e moral.
Como
sempre, rumou para o bairro rico repetindo seu lema como um mantra,
adepto que era desse tipo de prática zen. Era hora do almoço e o ar
recendia à mistura de temperos, carnes e cozidos. Foi um duro golpe à
pétrea força de vontade de Jairo que decidiu, então, entocar-se ao lado
de uma reluzente garagem e, como uma serpente, esperar a hora certa do
bote. Agachado na relva milimetricamente alinhada, Jairo escutou até que o
tilintar dos talheres e o gorgolejar dos refrescos carbonatados terminasse, sinal
claro de que os moradores já se haviam satisfeito. Movendo-se
silenciosamente, entrou por um basculante e encontrou-se no banheiro
social da casa. Aproveitou para tirar de si a sujeira, pelo menos aquela
que levava às mãos, já que, além da confissão seguida de prece, ainda
não inventaram canos e muito menos água, seja ela qual for, e não se
deixem enganar pela benta, que leve consigo a sujeira da alma.
Com
a confiança e o espírito renovados como só um borrifo de água gelada o
faz, saiu do banheiro e andou pelo térreo agora vazio. Era comum naquele
bairro que as famílias tirassem a
sesta, ainda mais àquela época do ano quando o calor requer um par a mais de horas antes de ser encarado. Portanto, foi Jairo até a cozinha e, das baixelas que descansavam sobre a bancada de mármore posicionada como uma ilha de prazeres no meio da cozinha, fez-se um prato.
Comeu rápido e lambuzou-se. Satisfeito,
lavou educadamente a louça sob um fio estreito de água da pia, evitando que o barulho da ação afetasse a inação dos habitantes do lugar e começou a perambular pela casa vazia.
Mexeu nos porta-retratos, cogitou ligar a TV, mas apenas experimentou o
poder de ter os controles-remotos nas mãos enquanto espreguiçava na poltrona, folheou as revistas e desmarcou
a Bíblia recostada no altar. Era hora de partir, pensou. O ajuste entre
excesso e falta havia sido consumado, vingou-se intimamente da
sociedade. Voltou então ao banheiro para completar o processo e usar uma das escovas elétricas que la havia junto com o dentifrício que prometia brancos absolutos, mas, como
um leão que se joga à savana após encher de zebra ou gazela o bucho,
entregando-se a uma indolência que só o poder de seu urro lhe confirma,
Jairo aboletou-se ao trono que havia no pequeno banheiro e reinou, não como citado rei dos animais,
mas como um homem no máximo de sua própria auto-proclamada majestade.
E
ser rei nessas situações requer muito cuidado pois mesmo os órgãos
internos podem amotinar-se. E foi o que aconteceu a Jairo, uma vez que
ao ver-se naquela situação pretensamente segura mas, no fundo,
imensamente delicada ouviu a sirene da revolução soando alto de dentro
de seu ventre. E tão fortes retumbavam os tambores lá dentro que despertou a família lá no
andar de cima que, prevenida na arte de manter o que lhes era posse,
reuniu-se ao topo da escada com as melhores armas que puderam escolher
entre as roupas de cama e as meias das gavetas. O mais novo, pela sua
própria natureza, era o mais bem equipado levando aberta consigo a
lâmina do canivete suíço. Pé ante pé, a família pôs-se escada abaixo
numa proximidade corporal só comparável `as falanges espartanas ou aos abraços de Natal, todos ouvindo o gorgolejo
gutural que vinha do banheiro de baixo.
Jairo não ouviu
nada, preocupado que estava com o próprio estalar de tripas, e nem viu
quando a família abria inadvertidamente a porta do banheiro onde, agora,
além de ruídos, cheiros indesejáveis também ajudavam a gravar para
sempre na memória o espetáculo dantesco que era Jairo, calças aos joelhos, meio
corpo para fora, tentando fugir, do banheiro e da vergonha, pelo
basculante.
Um comentário:
Final engraçado para uma história que foi construída a partir de um drama.. achei bem interessante...
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