O que lês quando não és forçado determina o que serás quando não tiveres escolha. - Oscar Wilde.
28 de novembro de 2011
Fundo de mim
Um prado verde, uma campina
o vento e seu olhar de menina
cabelos em trança para não embaraçar
Corre, liberta, vestindo carmim
babados de renda
colar de jasmim
Fizeste um presente
e me deste sorrindo
suas mãos que tocaram no fundo de mim
Fita vermelha, papel colorido
caixinha com seda, anel de rubi
Abre um sorriso e foge do beijo
olhos que viram no fundo de mim
Me pede um abraço, caindo no chão
confusa em meus braços, o sim e o não
suspira baixinho, me dá um carinho
descobre um cadinho no fundo de mim
22 de novembro de 2011
Uma Grande Surpresa
A barriga vazia retorcia-se sob a camisa de Jairo. A tentação do
furto era cada vez mais sufocante. Com frequência se deixava convencer
da facilidade dessa escolha e da insensibilidade da vítima de dar-se
conta da perda. Afinal, espírito virtuoso que sempre fora, escolheria
algum lugar de extrema abundância para praticar o delito,
justificando-se no fato de que em lugar que muito há, o pouco que falta
não se fará notar.
Protegida a alma sob o escudo da auto-sugestão, lá se foi Jairo emboscar sua presa. Perambulou pela cidade por algumas horas dando uma última chance à caridade humana, ainda lutando intimamente para não sucumbir à sua condição de faminto e, por conseguinte, desesperado, o que só lhe traria confusão ao raciocínio e risco às suas já fragilizadas integridades física e moral.
Como sempre, rumou para o bairro rico repetindo seu lema como um mantra, adepto que era desse tipo de prática zen. Era hora do almoço e o ar recendia à mistura de temperos, carnes e cozidos. Foi um duro golpe à pétrea força de vontade de Jairo que decidiu, então, entocar-se ao lado de uma reluzente garagem e, como uma serpente, esperar a hora certa do bote. Agachado na relva milimetricamente alinhada, Jairo escutou até que o tilintar dos talheres e o gorgolejar dos refrescos carbonatados terminasse, sinal claro de que os moradores já se haviam satisfeito. Movendo-se silenciosamente, entrou por um basculante e encontrou-se no banheiro social da casa. Aproveitou para tirar de si a sujeira, pelo menos aquela que levava às mãos, já que, além da confissão seguida de prece, ainda não inventaram canos e muito menos água, seja ela qual for, e não se deixem enganar pela benta, que leve consigo a sujeira da alma.
Com a confiança e o espírito renovados como só um borrifo de água gelada o faz, saiu do banheiro e andou pelo térreo agora vazio. Era comum naquele bairro que as famílias tirassem a sesta, ainda mais àquela época do ano quando o calor requer um par a mais de horas antes de ser encarado. Portanto, foi Jairo até a cozinha e, das baixelas que descansavam sobre a bancada de mármore posicionada como uma ilha de prazeres no meio da cozinha, fez-se um prato.
Comeu rápido e lambuzou-se. Satisfeito, lavou educadamente a louça sob um fio estreito de água da pia, evitando que o barulho da ação afetasse a inação dos habitantes do lugar e começou a perambular pela casa vazia. Mexeu nos porta-retratos, cogitou ligar a TV, mas apenas experimentou o poder de ter os controles-remotos nas mãos enquanto espreguiçava na poltrona, folheou as revistas e desmarcou a Bíblia recostada no altar. Era hora de partir, pensou. O ajuste entre excesso e falta havia sido consumado, vingou-se intimamente da sociedade. Voltou então ao banheiro para completar o processo e usar uma das escovas elétricas que la havia junto com o dentifrício que prometia brancos absolutos, mas, como um leão que se joga à savana após encher de zebra ou gazela o bucho, entregando-se a uma indolência que só o poder de seu urro lhe confirma, Jairo aboletou-se ao trono que havia no pequeno banheiro e reinou, não como citado rei dos animais, mas como um homem no máximo de sua própria auto-proclamada majestade.
E ser rei nessas situações requer muito cuidado pois mesmo os órgãos internos podem amotinar-se. E foi o que aconteceu a Jairo, uma vez que ao ver-se naquela situação pretensamente segura mas, no fundo, imensamente delicada ouviu a sirene da revolução soando alto de dentro de seu ventre. E tão fortes retumbavam os tambores lá dentro que despertou a família lá no andar de cima que, prevenida na arte de manter o que lhes era posse, reuniu-se ao topo da escada com as melhores armas que puderam escolher entre as roupas de cama e as meias das gavetas. O mais novo, pela sua própria natureza, era o mais bem equipado levando aberta consigo a lâmina do canivete suíço. Pé ante pé, a família pôs-se escada abaixo numa proximidade corporal só comparável `as falanges espartanas ou aos abraços de Natal, todos ouvindo o gorgolejo gutural que vinha do banheiro de baixo.
Jairo não ouviu nada, preocupado que estava com o próprio estalar de tripas, e nem viu quando a família abria inadvertidamente a porta do banheiro onde, agora, além de ruídos, cheiros indesejáveis também ajudavam a gravar para sempre na memória o espetáculo dantesco que era Jairo, calças aos joelhos, meio corpo para fora, tentando fugir, do banheiro e da vergonha, pelo basculante.
Protegida a alma sob o escudo da auto-sugestão, lá se foi Jairo emboscar sua presa. Perambulou pela cidade por algumas horas dando uma última chance à caridade humana, ainda lutando intimamente para não sucumbir à sua condição de faminto e, por conseguinte, desesperado, o que só lhe traria confusão ao raciocínio e risco às suas já fragilizadas integridades física e moral.
Como sempre, rumou para o bairro rico repetindo seu lema como um mantra, adepto que era desse tipo de prática zen. Era hora do almoço e o ar recendia à mistura de temperos, carnes e cozidos. Foi um duro golpe à pétrea força de vontade de Jairo que decidiu, então, entocar-se ao lado de uma reluzente garagem e, como uma serpente, esperar a hora certa do bote. Agachado na relva milimetricamente alinhada, Jairo escutou até que o tilintar dos talheres e o gorgolejar dos refrescos carbonatados terminasse, sinal claro de que os moradores já se haviam satisfeito. Movendo-se silenciosamente, entrou por um basculante e encontrou-se no banheiro social da casa. Aproveitou para tirar de si a sujeira, pelo menos aquela que levava às mãos, já que, além da confissão seguida de prece, ainda não inventaram canos e muito menos água, seja ela qual for, e não se deixem enganar pela benta, que leve consigo a sujeira da alma.
Com a confiança e o espírito renovados como só um borrifo de água gelada o faz, saiu do banheiro e andou pelo térreo agora vazio. Era comum naquele bairro que as famílias tirassem a sesta, ainda mais àquela época do ano quando o calor requer um par a mais de horas antes de ser encarado. Portanto, foi Jairo até a cozinha e, das baixelas que descansavam sobre a bancada de mármore posicionada como uma ilha de prazeres no meio da cozinha, fez-se um prato.
Comeu rápido e lambuzou-se. Satisfeito, lavou educadamente a louça sob um fio estreito de água da pia, evitando que o barulho da ação afetasse a inação dos habitantes do lugar e começou a perambular pela casa vazia. Mexeu nos porta-retratos, cogitou ligar a TV, mas apenas experimentou o poder de ter os controles-remotos nas mãos enquanto espreguiçava na poltrona, folheou as revistas e desmarcou a Bíblia recostada no altar. Era hora de partir, pensou. O ajuste entre excesso e falta havia sido consumado, vingou-se intimamente da sociedade. Voltou então ao banheiro para completar o processo e usar uma das escovas elétricas que la havia junto com o dentifrício que prometia brancos absolutos, mas, como um leão que se joga à savana após encher de zebra ou gazela o bucho, entregando-se a uma indolência que só o poder de seu urro lhe confirma, Jairo aboletou-se ao trono que havia no pequeno banheiro e reinou, não como citado rei dos animais, mas como um homem no máximo de sua própria auto-proclamada majestade.
E ser rei nessas situações requer muito cuidado pois mesmo os órgãos internos podem amotinar-se. E foi o que aconteceu a Jairo, uma vez que ao ver-se naquela situação pretensamente segura mas, no fundo, imensamente delicada ouviu a sirene da revolução soando alto de dentro de seu ventre. E tão fortes retumbavam os tambores lá dentro que despertou a família lá no andar de cima que, prevenida na arte de manter o que lhes era posse, reuniu-se ao topo da escada com as melhores armas que puderam escolher entre as roupas de cama e as meias das gavetas. O mais novo, pela sua própria natureza, era o mais bem equipado levando aberta consigo a lâmina do canivete suíço. Pé ante pé, a família pôs-se escada abaixo numa proximidade corporal só comparável `as falanges espartanas ou aos abraços de Natal, todos ouvindo o gorgolejo gutural que vinha do banheiro de baixo.
Jairo não ouviu nada, preocupado que estava com o próprio estalar de tripas, e nem viu quando a família abria inadvertidamente a porta do banheiro onde, agora, além de ruídos, cheiros indesejáveis também ajudavam a gravar para sempre na memória o espetáculo dantesco que era Jairo, calças aos joelhos, meio corpo para fora, tentando fugir, do banheiro e da vergonha, pelo basculante.
14 de novembro de 2011
Centésimo post
O céu estava encoberto há dias, porém num abafamento digno de microondas. Até que numa quinta-feira, depois da novela, choveu.
Choveu como não chovia há tempos. Quando nos acostumamos às coisas de um jeito, fica difícil imaginar como precederíamos se fossem diferentes. Foi exatamente por isso que, por anos, meus pais postergavam a limpeza da calha de chuva da casa. Tudo bem, não os culpo, tarefa chata que é e que só percebemos bem sua importância no momento em que não podemos mais contar com ela. E não somos assim mesmo com tudo?
Pois bem, nessa chuvosa quinta-feira os céus decidiram mandar água além da conta da já comprometida capacidade da tal calha, o que levou a um transbordamento e, por fim, lagoas dentro dos cômodos da casa. No meu quarto o estrago foi grande. Móveis, carpete e roupas. Porém o maior dano e talvez o único irreparável tenha sido a pasta onde eu guardava o que escrevera até então ainda nos originais à mão em papel.
Comecei a escrever bem jovem como uma válvula de escape e um porto seguro, inseguro e ansioso que era (era?). E ali, naquela pasta, estavam relatos, rimas e estórias que não só mostravam a evolução de meu estilo (estilo?) mas (e muito mais) a minha própria.
Senti um aperto no peito ao ver as páginas - caderno, folhas sem pauta e guardanapos - chorando azul e borrando idéias, sentimentos e paisagens tão importantes para mim quanto a própria memória delas mesmas. Salvando o que podia, meti tudo num lugar seco e decidi que não perderia mais nada que escrevesse, por mais duvidosa que fosse a sua qualidade.
E foi então que surgiu a necessidade de guardar tudo fora do papel. Primeiro num lugar que fosse só meu, como merecem as coisas muito pessoais. Mas, aos poucos fui vencendo o pior dos críticos, eu mesmo, e abri acesso a quem quisesse poder navegar não por tudo, mas por onde o tempo já houvesse consolidado e pouca diferença faria a opinião dos outros.
Numa primavera há sete anos incluí os primeiros textos (textos?) - não sem um imenso crivo - e para comemorar o centésimo post deste espaço, tiro-lhes o pó e reapresento-os como os pioneiros e desbravadores deste Império das Letras.
Boa leitura.
Choveu como não chovia há tempos. Quando nos acostumamos às coisas de um jeito, fica difícil imaginar como precederíamos se fossem diferentes. Foi exatamente por isso que, por anos, meus pais postergavam a limpeza da calha de chuva da casa. Tudo bem, não os culpo, tarefa chata que é e que só percebemos bem sua importância no momento em que não podemos mais contar com ela. E não somos assim mesmo com tudo?
Pois bem, nessa chuvosa quinta-feira os céus decidiram mandar água além da conta da já comprometida capacidade da tal calha, o que levou a um transbordamento e, por fim, lagoas dentro dos cômodos da casa. No meu quarto o estrago foi grande. Móveis, carpete e roupas. Porém o maior dano e talvez o único irreparável tenha sido a pasta onde eu guardava o que escrevera até então ainda nos originais à mão em papel.
Comecei a escrever bem jovem como uma válvula de escape e um porto seguro, inseguro e ansioso que era (era?). E ali, naquela pasta, estavam relatos, rimas e estórias que não só mostravam a evolução de meu estilo (estilo?) mas (e muito mais) a minha própria.
Senti um aperto no peito ao ver as páginas - caderno, folhas sem pauta e guardanapos - chorando azul e borrando idéias, sentimentos e paisagens tão importantes para mim quanto a própria memória delas mesmas. Salvando o que podia, meti tudo num lugar seco e decidi que não perderia mais nada que escrevesse, por mais duvidosa que fosse a sua qualidade.
E foi então que surgiu a necessidade de guardar tudo fora do papel. Primeiro num lugar que fosse só meu, como merecem as coisas muito pessoais. Mas, aos poucos fui vencendo o pior dos críticos, eu mesmo, e abri acesso a quem quisesse poder navegar não por tudo, mas por onde o tempo já houvesse consolidado e pouca diferença faria a opinião dos outros.
Numa primavera há sete anos incluí os primeiros textos (textos?) - não sem um imenso crivo - e para comemorar o centésimo post deste espaço, tiro-lhes o pó e reapresento-os como os pioneiros e desbravadores deste Império das Letras.
Boa leitura.
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