30 de novembro de 2010

Flor de vaso

Quem te colhe, flor de vaso
que não sangre em teus espinhos
disponíveis, caso a caso
desabrochando-se em carinhos

Sob a nesga do primeiro fogo
colore sonhos de aurora
Estica-se na janela, em gozo
a quem preso a ti, devora

És tudo e nada ao mesmo tempo
de verve e obviedade
adula em seiva rubra o ressentimento
das mais belas crueldades

Fez luz nova brilhar no prado
que expôs em cor e som
aquele velho arroio questionado
sem marcas de mordida ou batom

Uma vez doce e singela
inocula teu veneno em borbotões
teus espinhos, caninos em assalto
vens do alto, vampira de emoções

Eram óbvios os destinos
Teu e meu em paralelos
dos beijos que sacudiram sinos
restam os golpes dos martelos

18 de novembro de 2010

Antes da catraca

Este deveria ter sido o primeiro post deste blog. Mas como eu só escrevi ele ontem, fica hoje o registro.

Antes da catraca

Sempre andei de ônibus e sentava antes da catraca, na época que ainda se entrava nos ônibus pela parte de trás, só para ficar observando as pessoas. Tentava imaginar de onde vinham e pra onde iam. Sentia-me um tipo de Sherlock Holmes adivinhando os pontos aonde cada passageiro saltaria.


Mas isso acabou depois que fui assaltado. Os assaltos a ônibus eram comuns, mas, geralmente, os que sentavam antes da catraca eram poupados. Sentar antes da catraca dava às pessoas um ar de marginalidade, de revolta, o trocador achava que a gente ia dar calote. Essa suposta marginalidade nos aproximava dos verdadeiros marginais em ação catando os pertences dos integrados pagadores de passagem lá na frente. Mas, apesar de ter incorporado essa aura marginal à minha atitude, de nada me valeu nesse dia e, graças a deus, consegui, com o tempo, diminuir minha dependência do transporte público.

Viajar antes da catraca também era o fenótipo de uma característica que carrego em meu DNA: a introspecção. Lá de trás conseguia ver tudo sem ser visto e isso me dá outra característica: a possibilidade de ver em perspectiva. Sou bom em me colocar no lugar dos outros e, talvez pelos dois motivos, seja impelido a escrever.

Por muito tempo preferi a poesia que era a realização do “ver sem ser visto”. Mas, aos poucos, a prosa vem me cativando e, através dos contos, ponho em ação essa veia documental destilada nesses pequenos textos cujo estilo, se tiverem paciência e altruísmo suficientes, constatarão nas descrições, às vezes exageradas, foco principal do meu aprimoramento, e nas metáforas inusitadas.

Não domino técnicas nem trago ainda grande bagagem literária nas costas, mas tenho boas intenções. Espero que, um dia, alguma frase que eu venha a escrever ou tenha já escrito provoque uma lágrima ou um sorriso, um susto ou uma reflexão, enjôo ou júbilo. Mas, enquanto isso não acontece, estarei aqui, atrás da catraca, absorvendo e escrevendo até onde esse ônibus me levar.

15 de novembro de 2010

O comprometimento do salmão

Estava pegando no sono. Meu pé esquerdo sentia o fluxo do rio onde estava pela metade, trazendo da ponta dos dedos uma sensação de pura paz. Não havia barulhos senão o murmurar baixo como um sussurro da água desfazendo-se em espuma contra uma pedra maior e o chacoalhar das copas das árvores tão altas que me desafiavam a visão quase desfalecida.

Acompanhava com olhos semicerrados a água em seu ir sem vir, numa única e decidida direção, para o baixo. Sem sucesso tentava carregar meu pé que, preso a mim, opunha uma resistência desleal. Sucesso, sim, tinha ao levar o leito, as pequenas pedras e os peixes que, dispondo da própria correnteza do rio, deixavam-se levar até não sei onde, o lugar onde os peixes preferem viver.

Porém, perto da outra margem havia um que lutava contra a força do rio. Era um salmão grande e vermelho. Via-se que lutava contra a correnteza sem, no entanto, conseguir sair do lugar. Se os tivesse, trincaria dentes e contrairia a fronte, num daqueles sinais humanos de esforço. Mas como peixe era, denotava outros sinais que qualquer observador, seja acostumado com o fenômeno, seja admirado com o inusitado, entenderia e lhe emprestaria um adjetivo humano qualquer para descrever essa luta, convenhamos desumana.

Acompanhei o peixe até o estertor das forças o que, para minha surpresa, não aconteceu uma, mas três ou quatro vezes. Era persistente, o danado. Quando eu achava que o rio havia vencido, varrendo o peixe para detrás de uma pedra, eis que após alguns minutos de descanso, voltava ele a sacolejar sua espinha rio acima.

Já desfeito de minha intenção de dormir e retirando finalmente meu pé de dentro daquele campo de batalha, fiquei acompanhando rio e peixe a se digladiarem refletindo sobre o que levaria o peixe a subir tamanha correnteza e, pior, o que levaria o rio a dificultar-lhe tanto o trabalho.

Rio e peixe são coisas que, diferente da gente, não se sentam à margem das cidades a refletir sobre as desventuras dos humanos em que nela vivem. Se o fizessem, porém, talvez não tivessem a mesma dificuldade que tive para dormir ao observar esta luta que descrevo.

Pois bem, refletia sobre as dificuldades de um e de outro e me vi sobre a pressão de julgar-lhes não as intenções, pois que são irracionais ambos e delas se privam, pelo menos até onde a ciência contemporânea entende, mas os instintos que a natureza põe em conflito. Mas como o rio em si não encerra, exceto em poesia, nem intenção nem instinto, foquemos no peixe a reflexão e deixemos o rio seguir seu curso.

O peixe sabe que sua cria tem mais chance de sobreviver se estiver numa calma lagoa, cercada como um forte-apache, sem predadores. Por isso, recorre a ela todo ano, pelo menos uma vez por ano, para procriar e, nesse período, se mais uma vez compararmos peixes e homens, o que se viria naquela lagoa seria um grande bacanal. Muitos peixes, machos e fêmeas agrupados num espaço fechado com um simples propósito: fazer com que o esperma de uns chegue e fecunde os ovos das outras. Tirando o fato de que agrupamentos humanos com esse específico propósito não existem, pelo menos não para procriação, tomamos pelo bacanal como a situação que parece ser a mais similar para termos de comparação, pois, mais uma vez, peixes são privados tanto de intenções quanto de responsabilidades e, se assim não fosse, com certeza não estariam os peixes por aí a fecundar qualquer peixa que lhe cruzasse o caminho, ou melhor dizendo, a corrente.

Nessa calma lagoa à qual recorrem tantos peixes e peixas acontece uma algazarra. São muitos indivíduos para um espaço diminuto. Chegam a uma conclusão coletiva: a de que, se permanecerem ali para sempre desfrutando da calma e da segurança, logo não haverá espaço, muito menos alimento, para eles e para a prole que está vindo e que é a razão primeira de eles mesmos estarem ali. Pois eis que, chegando a essa conclusão, os peixes, após certificados de que fizeram o que foram ali para fazer, deixam o local e voltam para o mar. Mas nem todos, há alguns que, exaustos da luta contra a correnteza e da ejaculação constante dos últimos dias, morrem ali mesmo e, religiosamente, dão de seu próprio corpo como alimento ao porvir das gerações.

Talvez mais impressionante do que a luta contra o rio seja o fato de que esses peixes, para procriar, voltem exatamente ao mesmo rio em que foram concebidos. Imaginem um diminuto peixe dentro da imensidão do oceano, sem placas que os orientem ou pontos de referência que os localizem, uma vez que, dentro do mar, qualquer coisa que permaneça imóvel por um longo período é consumido pelas algas, corais e outras coisas do gênero que fazem uma atualização constante da orografia e da decoração do lugar, tentando, após muito tempo e muito nado, voltar exatamente para seu ponto de partida. Talvez essa bússola interna, cujo Norte é seu ponto de partida, seja a compensação que a natureza achou por bem dar ao bicho que, não tendo intenção ou responsabilidade, se comprometeu desde os primórdios dos tempos a ser uma metáfora de completação de ciclos.

Ser concebido, nascer, deixar-se ao sabor do rio que vai e posteriormente ao sabor das marés que vão e vem, voltando, enfim, depois de muito nado, para o lugar onde tudo começou. E a volta é hercúlea, pois parece que nada ajuda o pobre peixe. Não havendo rota definida, uma vez chegando ao rio, este lhe barra o caminho com tanta intensidade que, mesmo que no final das contas chegue ao destino, que era primeiramente o lugar de onde nunca deveria ter saído, não lhe resta lá muito mais senão morrer.


Satisfeito com a definição do destino ictíaco, parei de refletir. Sentei-me e tirei a botina para colocar de novo meu pé esquerdo na água, pois minha intenção é estar com pelo menos metade do pé ao sabor do rio enquanto deixo meu corpo ao sabor do sono.

5 de novembro de 2010

Comendo, rezando e amando o Capitão Nascimento

Nesse feriado aproveitei para colocar em dia minhas responsabilidades cívicas, aquelas que todos temos que cumprir mesmo sem querer. Então, fiz duas coisas: votei e fui ver os filmes mais comentados do momento – Tropa de Elite 2 e Comer, Rezar e Amar.


Peguei uma seção dupla: mais cedo me alistei no BOPE e fui com o agora Tenente Coronel Nascimento atrás do novo inimigo. Ainda com sangue na lapela e com a vista cheia de realidade, jantei um belo arroz de polvo e depois me deixei levar pelos devaneios yuppies da bem sucedida em crise existencial Liz Gilbert. No fim, não resisti à tentação de imaginar o que aconteceria se os dois protagonistas se conhecessem.

Se a viagem da escritora ao exterior motivada por sua busca interior a trouxesse ao Brasil, poderia, gastando menos dólares ter aprendido tudo que aprendeu em um ano de gastança rodando o mundo. Na Bahia, aprenderia um novo idioma, o baiano, se empanturrando de iguarias tão ou mais calóricas que os diversos macarrões italianos. Poderia aprender a humildade sem lavar o chão dos templos hindus, mas pescando com lanças nua em pêlo nas comunidades indígenas no interior no Pará, seria uma bela cena. E, finalmente, encontrar seu guru no Rio de Janeiro – o Tenente Coronel Nascimento – no cubículo mais alto, do prédio mais alto do comando mais alto da inteligência policial carioca.

Obviamente o Coronel Nascimento não tem o charme desdentado do guru original, mas também tem a mesma rude sabedoria cujos preceitos básicos provavelmente levariam Liz às mesmas conclusões sem precisar de tanto tempo e num único lugar.

Seria ele a fazer com que ela superasse a propensão imperialista de todo americano e trocaria o peru da ceia de Ação de Graças pelas delícias de um churrasquinho de esquina em Padre Miguel sob fios de alta tensão apinhados de pombos com as mais poéticas misantropias. Lá se apaixonaria pela malemolência brejeira dos operários do pagode, não sem antes descobrir, em Mesquita, o porquê de a Chatuba ser o bonde dos careca (sic).

Seria ele a aproximá-la da fé mostrando que a entediante meditação poderia ser substituída pela pragmática seção de descarrego no templo maior em Del Castilho onde descobriria que o voto de verborragia tem mais poder sobre os ignorantes que o voto de silêncio e que num auditório com duas mil cadeiras poderiam ser encontrados mais de dois mil encostos.

Seria ele próprio, o Coronel Nascimento, a apresentar à moça o amor. Não esse amor hollywoodiano da qual ela fugiu por descobri-lo vazio, mas um amor com a singeleza do Méier, que a fará sonhar em ser apresentadora de telejornal. Um amor tijucano que se cultiva nas efervescentes beiras de piscina dos clubes e nas reluzentes praças de alimentação dos shoppings. E pegariam juntos o 607 chacoalhando até o ponto final, onde se matariam de amor no escurinho aconchegante do Largo do Estácio.

E, no final, ela encontraria no discurso dele logo após o incidente entre o Capitão Matias e o Beirada durante a ocupação de Bangu 1, aquelas palavras que a traduzirão por completo: você tem que aproveitar as chances que tem, mas lembrando que tem coisas que fazem um furo pequeno na entrada, mas o buraco de saída é do tamanho de uma tangerina.