24 de maio de 2011

Esperança

“Vamos dar o nosso sangue para salvar a menina Esperança”

“Curti” – pensou Gonzalo ao clicar no botão respectivo daquela rede social. A mensagem era dolorosa: uma escola havia sido invadida por um psicopata que se matou após alvejar treze crianças. Mas a sociedade se organizava para doar sangue aos feridos e principalmente à pequena Esperança, jovem matriculada na quarta série que, entre a vida e a morte, necessitava de sangue na UTI. Ela virou a imagem da tragédia.

Gonzalo, preparando-se para dormir, fechou o laptop decidido a ir até o instituto médico onde a menina estava internada. Após um período turbulento em sua vida, agora tentava colocar a cabeça no lugar e a ação voluntária parecia fazer sentido na lista de atitudes que passaria a ter daqui para frente.

Na manhã seguinte, Gonzalo cumpriu sua rotina: acordou, tomou café, banho, masturbou-se, escovou os dentes, vestiu-se e saiu à prática recém adotada do voluntariado. Como ainda era cedo, não pegou fila e foi encaminhado prontamente à sala de coleta.

Sentou-se e aguardou alguns minutos até que uma moça de seus vinte e poucos anos, jaleco branco e olhos amendoados entrou na sala com um sorriso. Gonzalo se ajeitou na cadeira desconfortável e respirou fundo valorizando o tórax e lendo no crachá dela “Enfermeira Lea”.

Lea deu um bom dia educado e foi descrevendo automática o procedimento enquanto arrumava o material necessário em cima da mesa. Gonzalo não prestou atenção em nada além do discreto decote que prometia seios proporcionais á estatura baixa e compleição justa da menina, pelo menos até ela perguntar seu nome.

Nesse instante, Gonzalo levantou os olhos mirando nos dela e embalou a resposta com seu sorriso mais comprido. A moça sorriu de volta e continuou:

- Sr. Gonzalo, vou fazer algumas perguntas para saber se o senhor esta apto a doar sangue para o nosso banco. Posso?

Instintivamente, Gonzalo responderia um lânguido “pode tudo”, mas limitou-se a dizer um “sim” cortês.

- Peso.

- 75kg

- Altura.

- 1,78cm

- Alergias?

- Não.

- Doença crônica?

- Não.

- Toma alguma medicação de uso constante?

- Não – mentiu lembrando-se da crescente freqüência com que agora consumia vaso-dilatadores.

- Tem alguma tatuagem?

- Não.

- Se masturba mais de uma vez por dia?


Gonzalo arregalou os olhos e demorou longos segundos para decidir o que responder. Por um lado queria muito cultivar o civismo e fazer sua parte na comoção social pela trágica situação da menina internada e não tinha noção se muito é bom ou ruim nesse caso. Por outro, não queria expor aquele hábito incompreendido àquela linda moça que, até onde sua percepção podia alcançar, havia respondido positivamente a seus flertes.
Mas ainda havia uma terceira alternativa:

- Hoje em dia, não – respondeu confiante e foi a vez de Lea desamendoar os olhos, arregalando-os.

- Desculpe. Não entendi – desconversou a menina e perguntou novamente – o que disse?

- Hoje em dia, não. Já houve épocas em que me masturbava três vezes ao dia. Mas me expunha a muitos riscos com a vespertina. Hoje faço uso desse artifício somente quando estou na dúvida se quero ou não sair com uma menina. Se após umazinha ainda estiver a fim de sair com ela, eu saio. Se não, fico em casa mesmo. Não troco uma boa descascada por qualquer mulher – terminou passando um dos braços por cima do encosto da cadeira sentindo-se mais à vontade, afinal era expert no assunto.

Sem saber como reagir, Lea só conseguiu ruborizar e quando já formulava uma resposta qualquer para fugir do assunto, um outro enfermeiro abriu a porta com tristeza e desolação no semblante pesado:

- Lea, suspende as coletas que a Esperança acabou de falecer.

A notícia pegou Gonzalo de calças arriadas. Literalmente. Uma vez que já se preparava para decidir se sairia ou não com Lea.

20 de maio de 2011

Babas

O urso magro saía da toca onde passou o inverno. Cansado de tanto dormir, ia equilibrando-se nas agora verdejantes árvores até a beira do rio que lhe chegava às narinas com o odor da vida.
Primeiro bebeu água, muita água, até que a sede morreu e a fome gritou das profundezas vazias do enorme estômago. Seus olhos seguiam a correnteza aflitos, fitando além da superfície. Pata ante pata até o meio do rio, o frio lhe obstando a consciência.
Gigante e frágil, quase vertendo lágrimas irracionais no limite da sobrevivência, o urso joga seu corpo sobre a truta e arranca e sacode no ar, como a comemorar sua conquista.
As escamas da truta brilham sob a baba do urso assim como a almofada escurecia sob a baba do telespectador do outro lado da tela, quase dormindo, minutos antes de trocar de canal.

18 de maio de 2011

A experiência de voar

Recentemente vi uma entrevista de um americano que atentava para a maravilha de voar. Ele apontava a grandiosidade de colocar um avião de toneladas de peso no ar e mante-lo seguramente lá durante todo o percurso, seja ele curto como uma ponte-aérea, seja longo como Rio-Hong Kong.


Concordei com ele na hora. É impressionante como a genialidade humana desafia as leis naturais e, para o bem do progresso, diminui as distancias amentando as velocidades valendo-se de se próprio intelecto. Por esse prisma, preocupar-se com o assento curto que mal cabem as pernas, as refeições de isopor e a falta de conforto nas classes mais comuns, perde todo o sentido. Palmas a esse americano ufanista.

Realmente a experiência de voar é quase magica. E é ela que compensa toda a complicação de se garantir um lugar dentro do vôo. Não há estresse maior do que a fila de check-in em uma grande cidade brasileira. A desorganização é geral. As empresas se esforçam e colocam à disposição opções pelo celular e pela internet, porém nenhum deles parece evitar esse fenômeno brasileiro chamado fila.

Se voce chega no aeroporto e ainda não comprou seu bilhete, enfrenta fila no balcão e no guichê. Se você já comprou seu bilhete, fica na fila do guichê. Se você já se adantou e fez o check-in pela internet ou pelo telefone, fica na fila de qualquer maneira daquela maquininha que emite o bilhete.

Isso só para garantir se lugar. Depois é fila pra ter a bagagem examinada pelo raio x, fila para embarcar, fila para desembarcar, fila para pegar a bagagem.

Eu queria saber onde esta a genialidade humana nessas horas. Se o homem consegue fazer voar uma estrutura de mais de vinte toneladas durante horas e horas, porque diabos não consegue fazer as filas desaparecerem? Ou pelo menos evitar que elas aconteçam.

Talvez o grande trunfo das empresas aéreas, o que encombre sua incompetência generalizada no atendimento a seus clientes antes do vôo, seja essa magia incompreendida da qual se valem na comunicação do seu serviço. No final, a experiência metafísica de voar acaba nos fazendo esquecer a estressante experiência de estar no solo dependendo delas para chega onde precisa. Pelo menos até o próximo embarque.