Apresentando o primeiro da série Contos
Corporativos.
I - Chaves de Fenda
- Da
China!? - exclamou sua pergunta Adalberto, o gerente tributário.
- Exatamente.
É de lá que tudo vem hoje. Tá vendo essa caneta? É de lá, tá vendo? - mostrou
Simão sacudindo-a no ar - É a mesma fábrica dessa caneca aí na sua mesa. E, se
der mole, até a cueca que você está vestindo é de lá.
- Minha
cueca é Calvin Klein.
- Então! É tailandesa. É tudo a mesma coisa.
A
conversa cessou quando Godofredo entrou na sala de reunião. Havia um clima
pesado no ar. As vendas que deveriam estar acima da média estavam abaixo por
algum sórdido motivo que ninguém poderia saber. Exceto os clientes, talvez. Com
o ar grave que a situação merecia, Godofredo, o gerente geral, deu início à
reunião após os litúrgicos dez minutos de atraso.
- Amigos,
estamos aqui para discutir soluções para aumentar as vendas. Alguém tem alguma
sugestão?
Como não
haviam sido informados do assunto da reunião, ninguém se manifestou. Quando a
sobrancelha esquerda de Godofredo elevou-se tremulante, sinal de esgotamento de
sua paciência, Adalberto tomou a palavra.
- Olha,
o Simão aqui - olhando para o colega ao lado - havia sugerido que importássemos
uns brindes da China para presentear os clientes.
Simão
que havia sido convocado por um descuido da secretária ao digitar o nome da
gerente de distribuição Simara, que encontrava-se em licença maternidade,
endireitou-se na cadeira e prendeu a respiração, enquanto Adalberto continuava.
- Ele
disse que até a sua cueca, Godofredo, deve ter sido fabricada na China. Afinal,
a gente sabe que tudo vem de lá. Dessa caneta - disse apontando a caneta de
Simão à mesa - até a roupa íntima de todo mundo aqui.
- Como
você sabe a procedência de nossas roupas íntimas? - indagou Godofredo agora com
as duas sobrancelhas arqueadas.
- Não é
bem assim - tentou consertar Simão, engolindo seco - Eu estava comentando com o
Adalberto que hoje tudo vem de lá e tal. E já que tudo vem de lá e é tudo meio
vagabundinho...menos a sua roupa íntima, claro, essa é de ótima qualidade...a gente
podia premiar os clientes que compram mais, os mais fiéis e tal.
- Temos
clientes fiéis? - perguntou sem olhar para o Gerente de Informações,
Relacionamento, Inteligência e Noções Orientadas (G.I.R.I.N.O) ao
que ele respondeu prontamente.
- Certamente,
Sr. Godofredo. E muitos. Só não sabemos quantos nem quem são, nem onde se
encontram. Mas segundo uma pesquisa recente onde perguntamos aos clientes sobre
sua fidelidade, quase cem por cento se disse fiel aos nossos produtos, o que
nos dá uma margem de erro de zero ponto sessenta e três por cento de chance de
agradá-los com brindes vagabundinhos.
A
proposta começava a ganhar envergadura e quando uma proposta agrada o gerente
geral ela deixa de ser órfã e acontece uma pouco solene disputa por sua
paternidade.
- Inclusive
- disse o gerente de marketing - nossos concorrentes nunca fizeram isso. Eu
mesmo já havia sondado as agências de publicidade que os atendem
sobre...sobre...sobre essa coisa de China e tudo o mais e eles disseram que
nunca ninguém comprou nada de lá. Isso nos dá uma vantagem competitiva -
completou com o jargão padrão para que todos esquecessem as baboseiras que
havia dito e concordassem bovinamente, intenção de todos os diplomados em propaganda.
O
gerente de vendas, então o dono do problema, não teve dúvidas - Vamos trazer
essas bugingangas então. Simão, quanto custa?
- Bom,
pelo que ouvi falar depende do item, da quantidade e das especificações. Mas se
estiverem todos de acordo eu posso sondar o fornecedor e...
- Calma
aí!! - interrompeu o coordenador de Aquisição de Itens Corporativos Secundários
- pode deixar que a minha área concentra as competências necessárias para esse
tipo de negociação estratégica. Estamos acostumados a lidar com os chineses e
sabemos que sua cultura não aceita diversos cacoetes negociais pelos quais
leigos despreparados costumam se deixar levar.
Godofredo
parecia satisfeito e levantou-se, mas não sem antes vaticinar como um oráculo
em tom ao mesmo tempo desafiador e motivante.
- Se
esses itens não estiverem aqui em duas semanas estão todos vocês na rua. E o
primeiro da lista é o Simão que deu a idéia.
Era um
líder nato.
Então,
em uma semana, empurrados por um Simão em desespero, cada um atuou em sua
especialidade. A G.I.R.I.N.O conduziu uma pesquisa online com dezessete
clientes que aprovaram as cores os formatos e o preço. A G.I.R.I.N.O, porém,
não garantia o sucesso da ação, uma vez que a campanha de comunicação,
responsabilidade do gerente de marketing, ainda não havia sido finalizada pela
agência de publicidade contratada, afinal a agência não estava acostumada a
trabalhar com prazos tão curtos e a quantidade de peças encomendadas era
enorme, desde outdoors, busdoors, taxidoors e os famosos wooblers que, por mais
que explicassem, ninguém do próprio departamento sabia direito para o que
servia, sabiam apenas que eram estratégicos.
Enfim a
campanha chegou, mas o marketing não garantia o sucesso da ação, uma vez que o
fato de serem produtos chineses era uma novidade e ninguém poderia prever a
reação dos clientes tão acostumados que estavam com o excelente produto que a
empresa lhes oferecia. Um fato a dar mais mistério à livre queda que
experimentavam as vendas.
Aprovados
os conceitos de comunicação e produto, o coordenador de Aquisição de Itens Corporativos Secundários entrou em contato com o consulado chinês, que o pôs em
contato com a câmara de comércio, que os pôs em contato com a associação de
produtores chineses do item escolhido, mas era a associação errada e perderam
alguns dias até descobrirem o que significava aquele misterioso ideagrama
vermelho no alto da folha de apresentação.
Por fim,
acharam um fornecedor e marcaram uma reunião. Simão não foi avisado, mas por
acaso esbarrou com o grupo pelos corredores da empresa e saudou efusivamente o
chinês, morador de Campinas, seu parceiro de ping-pong nos tempos de colégio,
atualmente representante da empresa chinesa escolhida.
A
reunião aconteceu e o setor de Aquisições emitiu parecer dizendo não poder
garantir o sucesso da ação devido ao fato de que o fornecedor não estava
cadastrado no sistema, processo que duraria mais ou menos um mês, tempo esse
que inviabilizaria a entrega no prazo mesmo que viessem de avião
fretado comercial desde Pequim ou Xangai, já não poderiam dizer com certeza.
Nenhum deles entendia bem o sotaque campineiro.
Simão
tomou para si a responsabilidade, coisa que sabiamente Godofredo já havia lhe
imputado, mestre na arte da delegação que era, e colocou seus próprios dados no
sistema, o que aceleraria o processo, mesmo sabendo que, à partir daí, estaria
devendo à sua própria empresa quase dois milhões de itens vagabundos chineses
equivalentes a meios milhão de dólares. O produtos eram realmente baratos.
Feito isso, disparou uma mensagem de “ok” para que a agência de publicidade
produzisse as peças, inclusive um filme de sessenta segundos para TV que
deveria estar no ar naquela noite.
Acompanhando online centímetro a centímetro o avião cruzar o planeta, Simão tinha ainda uma missão
a cumprir. Enquanto voavam os itens, Adalberto deveria preencher a papelada da
Receita Federal para que a inspeção aduaneira soubesse de antemão o que estava
por vir e não criasse caso com a enorme e inusitada carga para um cliente mais
inusitado ainda.
- Adalberto,
eu sei que já são cinco e quinze, mas antes de você ir embora, será que você
poderia me fazer a gentileza de, por favor, preencher a papelada da Receita dos
itens que estão vindo da China? - é impressionante como o desespero nos deixa
educados.
- Tá
vendo aquela caneta ali no chão? - perguntou Adalberto.
- Sim, é a chinesa. O
que que tem ela?
- Ela
caiu ali eram cinco horas.
- E daí?
- E daí
que ela está no chão desde às cinco horas porque à partir das cinco horas eu não trabalho mais.
- E o
que você está fazendo na empresa então??
- Estou
atualizando meu Facebook.
Vendo a
inutilidade de sua permanência ali, Simão catou a papelada da Receita e foi até
o Departamento de Notas Fiscais para ver se alguém ali poderia ajudá-lo, mas
também foi em vão. Então começou a preencher com o que achava certo. Inseriu um
número de CNPJ com vinte e três dígitos, um registro de importador inventado e despachou
tudo com um carimbo vermelho escrito PDR, sigla para Produto Defeituoso
Reutilizado.
Por
algum milagre que só o santo protetor dos processos corporativos poderia ter
perpetrado, os itens chegaram no último dia do prazo dado por Godofredo que foi
pessoalmente inspecionar as caixas de papelão carimbadas com diversos
ideagramas incompreensíveis. Ficou tão satisfeito que chegou até a comentar com sua
secretária.
A ação
correu na semana seguinte e foi um grande sucesso, como já haviam previsto os
especialistas da G.I.R.I.N.O, o marketing e o departamento de Aquisições. E a
causas de tanto sucesso eram óbvias: o levantamento acurado das preferências dos
cliente, a intocável campanha de comunicação que provavelmente renderia uma
indicação a Cannes para a agência e, claro, a perfeita negociação de condições
que fizera o departamento de Aquisições com o fornecedor.
Alguns
dias porém após a ação ter acontecido, as vendas que foram levemente elevadas e
conferiam ao gráfico uma esperançosa tendência de crescimento, voltou a cair e
a proximidade do vermelho no resultado da empresa levou Godofredo a chamar
outra reunião quase às nove da noite, mas dessa vez todos sabiam o assunto, apesar de novamente não
estar especificado na convocação via email.
Com
todos presentes, Godofredo disse.
- Confiei
em vocês e as vendas voltaram a cair. Quero que importem mais bugingangas da
China, mas dessa vez para essa semana. Vocês são bons e não vão cometer os
mesmos erros duas vezes. Já passaram por esse processo e sabem que pontos devem
ser revisitados. Uma semana. E se não chegar, Simão, você será demitido.
Sem
deixar que Godofredo terminasse a frase, Simão disparou da sala de reunião
direto para a baia onde trabalhava Adalberto na esperança de ainda encontrá-lo ali.
- Adalberto,
Adalberto! O Godofredo quer mais uma encomenda da China! Preciso
correr primeiro com a papelada da Receita. Me ajuda!?
-
Bugingangas da China de novo!? Só se fala nisso agora! Quero é saber quando
essa empresa vai voltar a vender chaves de fenda.
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