5 de julho de 2012

Contos Corporativos - I - Chaves de Fenda


Apresentando o primeiro da série Contos Corporativos.


I - Chaves de Fenda

- Da China!? - exclamou sua pergunta Adalberto, o gerente tributário.

- Exatamente. É de lá que tudo vem hoje. Tá vendo essa caneta? É de lá, tá vendo? - mostrou Simão sacudindo-a no ar - É a mesma fábrica dessa caneca aí na sua mesa. E, se der mole, até a cueca que você está vestindo é de lá.

- Minha cueca é Calvin Klein.

- Então! É tailandesa. É tudo a mesma coisa.

A conversa cessou quando Godofredo entrou na sala de reunião. Havia um clima pesado no ar. As vendas que deveriam estar acima da média estavam abaixo por algum sórdido motivo que ninguém poderia saber. Exceto os clientes, talvez. Com o ar grave que a situação merecia, Godofredo, o gerente geral, deu início à reunião após os litúrgicos dez minutos de atraso.

- Amigos, estamos aqui para discutir soluções para aumentar as vendas. Alguém tem alguma sugestão?

Como não haviam sido informados do assunto da reunião, ninguém se manifestou. Quando a sobrancelha esquerda de Godofredo elevou-se tremulante, sinal de esgotamento de sua paciência, Adalberto tomou a palavra.

- Olha, o Simão aqui - olhando para o colega ao lado - havia sugerido que importássemos uns brindes da China para presentear os clientes.

Simão que havia sido convocado por um descuido da secretária ao digitar o nome da gerente de distribuição Simara, que encontrava-se em licença maternidade, endireitou-se na cadeira e prendeu a respiração, enquanto Adalberto continuava.

- Ele disse que até a sua cueca, Godofredo, deve ter sido fabricada na China. Afinal, a gente sabe que tudo vem de lá. Dessa caneta - disse apontando a caneta de Simão à mesa - até a roupa íntima de todo mundo aqui.

- Como você sabe a procedência de nossas roupas íntimas? - indagou Godofredo agora com as duas sobrancelhas arqueadas.

- Não é bem assim - tentou consertar Simão, engolindo seco - Eu estava comentando com o Adalberto que hoje tudo vem de lá e tal. E já que tudo vem de lá e é tudo meio vagabundinho...menos a sua roupa íntima, claro, essa é de ótima qualidade...a gente podia premiar os clientes que compram mais, os mais fiéis e tal.

- Temos clientes fiéis? - perguntou sem olhar para o Gerente de Informações, Relacionamento, Inteligência e Noções Orientadas (G.I.R.I.N.O) ao que ele respondeu prontamente.

- Certamente, Sr. Godofredo. E muitos. Só não sabemos quantos nem quem são, nem onde se encontram. Mas segundo uma pesquisa recente onde perguntamos aos clientes sobre sua fidelidade, quase cem por cento se disse fiel aos nossos produtos, o que nos dá uma margem de erro de zero ponto sessenta e três por cento de chance de agradá-los com brindes vagabundinhos.

A proposta começava a ganhar envergadura e quando uma proposta agrada o gerente geral ela deixa de ser órfã e acontece uma pouco solene disputa por sua paternidade.

- Inclusive - disse o gerente de marketing - nossos concorrentes nunca fizeram isso. Eu mesmo já havia sondado as agências de publicidade que os atendem sobre...sobre...sobre essa coisa de China e tudo o mais e eles disseram que nunca ninguém comprou nada de lá. Isso nos dá uma vantagem competitiva - completou com o jargão padrão para que todos esquecessem as baboseiras que havia dito e concordassem bovinamente, intenção de todos os diplomados em propaganda.

O gerente de vendas, então o dono do problema, não teve dúvidas - Vamos trazer essas bugingangas então. Simão, quanto custa?

- Bom, pelo que ouvi falar depende do item, da quantidade e das especificações. Mas se estiverem todos de acordo eu posso sondar o fornecedor e...

- Calma aí!! - interrompeu o coordenador de Aquisição de Itens Corporativos Secundários - pode deixar que a minha área concentra as competências necessárias para esse tipo de negociação estratégica. Estamos acostumados a lidar com os chineses e sabemos que sua cultura não aceita diversos cacoetes negociais pelos quais leigos despreparados costumam se deixar levar.

Godofredo parecia satisfeito e levantou-se, mas não sem antes vaticinar como um oráculo em tom ao mesmo tempo desafiador e motivante.

- Se esses itens não estiverem aqui em duas semanas estão todos vocês na rua. E o primeiro da lista é o Simão que deu a idéia.

Era um líder nato.

Então, em uma semana, empurrados por um Simão em desespero, cada um atuou em sua especialidade. A G.I.R.I.N.O conduziu uma pesquisa online com dezessete clientes que aprovaram as cores os formatos e o preço. A G.I.R.I.N.O, porém, não garantia o sucesso da ação, uma vez que a campanha de comunicação, responsabilidade do gerente de marketing, ainda não havia sido finalizada pela agência de publicidade contratada, afinal a agência não estava acostumada a trabalhar com prazos tão curtos e a quantidade de peças encomendadas era enorme, desde outdoors, busdoors, taxidoors e os famosos wooblers que, por mais que explicassem, ninguém do próprio departamento sabia direito para o que servia, sabiam apenas que eram estratégicos.

Enfim a campanha chegou, mas o marketing não garantia o sucesso da ação, uma vez que o fato de serem produtos chineses era uma novidade e ninguém poderia prever a reação dos clientes tão acostumados que estavam com o excelente produto que a empresa lhes oferecia. Um fato a dar mais mistério à livre queda que experimentavam as vendas.

Aprovados os conceitos de comunicação e produto, o coordenador de Aquisição de Itens Corporativos Secundários entrou em contato com o consulado chinês, que o pôs em contato com a câmara de comércio, que os pôs em contato com a associação de produtores chineses do item escolhido, mas era a associação errada e perderam alguns dias até descobrirem o que significava aquele misterioso ideagrama vermelho no alto da folha de apresentação.

Por fim, acharam um fornecedor e marcaram uma reunião. Simão não foi avisado, mas por acaso esbarrou com o grupo pelos corredores da empresa e saudou efusivamente o chinês, morador de Campinas, seu parceiro de ping-pong nos tempos de colégio, atualmente representante da empresa chinesa escolhida.

A reunião aconteceu e o setor de Aquisições emitiu parecer dizendo não poder garantir o sucesso da ação devido ao fato de que o fornecedor não estava cadastrado no sistema, processo que duraria mais ou menos um mês, tempo esse que inviabilizaria a entrega no prazo mesmo que viessem de avião fretado comercial desde Pequim ou Xangai, já não poderiam dizer com certeza. Nenhum deles entendia bem o sotaque campineiro.

Simão tomou para si a responsabilidade, coisa que sabiamente Godofredo já havia lhe imputado, mestre na arte da delegação que era, e colocou seus próprios dados no sistema, o que aceleraria o processo, mesmo sabendo que, à partir daí, estaria devendo à sua própria empresa quase dois milhões de itens vagabundos chineses equivalentes a meios milhão de dólares. O produtos eram realmente baratos. Feito isso, disparou uma mensagem de “ok” para que a agência de publicidade produzisse as peças, inclusive um filme de sessenta segundos para TV que deveria estar no ar naquela noite.

Acompanhando online centímetro a centímetro o avião cruzar o planeta, Simão tinha ainda uma missão a cumprir. Enquanto voavam os itens, Adalberto deveria preencher a papelada da Receita Federal para que a inspeção aduaneira soubesse de antemão o que estava por vir e não criasse caso com a enorme e inusitada carga para um cliente mais inusitado ainda.

- Adalberto, eu sei que já são cinco e quinze, mas antes de você ir embora, será que você poderia me fazer a gentileza de, por favor, preencher a papelada da Receita dos itens que estão vindo da China? - é impressionante como o desespero nos deixa educados.

- Tá vendo aquela caneta ali no chão? - perguntou Adalberto.

- Sim, é a chinesa. O que que tem ela?

- Ela caiu ali eram cinco horas.

- E daí?

- E daí que ela está no chão desde às cinco horas porque à partir das cinco horas eu não trabalho mais.

- E o que você está fazendo na empresa então??

- Estou atualizando meu Facebook.

Vendo a inutilidade de sua permanência ali, Simão catou a papelada da Receita e foi até o Departamento de Notas Fiscais para ver se alguém ali poderia ajudá-lo, mas também foi em vão. Então começou a preencher com o que achava certo. Inseriu um número de CNPJ com vinte e três dígitos, um registro de importador inventado e despachou tudo com um carimbo vermelho escrito PDR, sigla para Produto Defeituoso Reutilizado.

Por algum milagre que só o santo protetor dos processos corporativos poderia ter perpetrado, os itens chegaram no último dia do prazo dado por Godofredo que foi pessoalmente inspecionar as caixas de papelão carimbadas com diversos ideagramas incompreensíveis. Ficou tão satisfeito que chegou até a comentar com sua secretária.

A ação correu na semana seguinte e foi um grande sucesso, como já haviam previsto os especialistas da G.I.R.I.N.O, o marketing e o departamento de Aquisições. E a causas de tanto sucesso eram óbvias: o levantamento acurado das preferências dos cliente, a intocável campanha de comunicação que provavelmente renderia uma indicação a Cannes para a agência e, claro, a perfeita negociação de condições que fizera o departamento de Aquisições com o fornecedor. 

Alguns dias porém após a ação ter acontecido, as vendas que foram levemente elevadas e conferiam ao gráfico uma esperançosa tendência de crescimento, voltou a cair e a proximidade do vermelho no resultado da empresa levou Godofredo a chamar outra reunião quase às nove da noite, mas dessa vez todos sabiam o assunto, apesar de novamente não estar especificado na convocação via email.

Com todos presentes, Godofredo disse.

- Confiei em vocês e as vendas voltaram a cair. Quero que importem mais bugingangas da China, mas dessa vez para essa semana. Vocês são bons e não vão cometer os mesmos erros duas vezes. Já passaram por esse processo e sabem que pontos devem ser revisitados. Uma semana. E se não chegar, Simão, você será demitido.

Sem deixar que Godofredo terminasse a frase, Simão disparou da sala de reunião direto para a baia onde trabalhava Adalberto na esperança de ainda encontrá-lo ali.

- Adalberto, Adalberto! O Godofredo quer mais uma encomenda da China! Preciso correr primeiro com a papelada da Receita. Me ajuda!?

- Bugingangas da China de novo!? Só se fala nisso agora! Quero é saber quando essa empresa vai voltar a vender chaves de fenda.

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