Pelas barras das celas do pavilhão cinco já havia corrido sangue demais. No piso de ardósia estavam marcadas como tatuagens de sangue indeléveis as tentativas frustradas de fugas e rebeliões passadas. Ainda era possível encontrar um dente perdido nos cantos dos degraus sob os corrimãos de aço fundido. Não havia cárcere naquele andar que não tivesse presenciado gritos de dor e choros sufocados de ira.
Sob essa atmosfera eram tratadas as tortas índoles daninhas à sociedade: oito detentos cujos crimes expiavam vestindo com o cinza de seus uniformes os longos dias cativos. As refeições frugais evitavam a preguiça, pois suas forças eram usadas para o trabalho na fábrica de tijolos que o presídio mantinha: seus esforços ajudariam a construir a sociedade e não mais destruí-la. Os banhos de sol eram curtos e as visitas escassas. Nesses dias específicos, seus corações empedernidos se amoleciam pela presença de um ente próximo (que poderia ser uma mãe arrependida ou um vizinho apiedado) ou pela simples ausência de alma que os quisesse bem ou mal. A sensação de abandono era trágica e, somada ao discurso dos psicoterapeutas que os acompanhavam, virava argumento motivador de mudanças de hábito, de amizades e de princípios.
O processo de domar essas pessoas com características tão extremas precisava utilizar-se de todas as oportunidades para a construção de símbolos que os fizessem produzir o esforço necessário para a mudança. Se um filme era projetado numa seção de cinema, sua mensagem deveria ter um conteúdo construtivo para o processo. A biblioteca exclusiva do pavilhão cinco encerrava obras de superação e perseverança. Uma orquestrada lavagem cerebral era posta em prática naquele pavilhão com resultados mais do que comprovados.
Nas paredes dos corredores de acesso às celas, rostos expunham esse sucesso. Albely de Souza, condenado a 19 anos de reclusão por tráfico de estupefacientes. Atual proprietário do hotel Alma Peregrina. Caetano Morais, condenado a 16 anos de reclusão por utilização de inimputáveis para prática de homicídio doloso. Atual chef do restaurante Ponte do Amanhã. E muitos, muitos outros exemplos de correção conseguidos pela instituição penal.
Os oito apocalípticos aspirantes a integrados, atuais moradores transitórios do pavilhão cinco, lutavam diariamente contra suas inclinações para, um dia, terem seus retratos pendurados naquelas paredes. Mas um deles pretendia algo diferente. Algo que o elevasse à condição transcendente de messias salvador.
Condenado por formação de quadrilha, uma condenação aparentemente menor em comparação às dos outros detentos, Ramiro foi o responsável pela organização criminal mais longeva e violenta do bairro onde morava. Sob seu comando estiveram onze meliantes responsáveis por crimes das mais diversas naturezas. Era um líder nato e, como tal, tinha a eloqüência necessária para aliciar tanto marginais quanto almas retas para seus esquemas. Conhecia a todos e mantinha-os perto fazendo-os acreditar que eram seus amigos. Era muito bom nisso.
Com sua capacidade ímpar de angariar informações, Ramiro descobriu que haveria algum evento interno daqui a três meses. Seu raciocínio rápido cruzou dois dados importantes que culminariam numa fuga perfeita: distração no mês de seu aniversário. Sairia da cadeia e comemoraria seus vinte e sete anos dentro do seu antigo covil, já preparando o próximo golpe.
Pôs mãos à obra e levantou o necessário: mapas, plantas, bilhetes, favores e concessões, tudo foi feito. Desenhou o plano e o caminho que faria através dos dutos de esgoto, as galerias pluviais e os corredores elétricos por sob a carceragem. Pronto. Precisaria de exatamente oitenta e sete dias entre o início das operações e a saída ao ar livre no dia do seu aniversário.
Apenas os mais confiáveis colegas de presídio sabiam do planejamento. Por mais que se sentisse auto-suficiente, teria que compartilhar algumas informações para conseguir privilégios e, no fundo, se sentir seguro, mas, principalmente, para ter de quem se vingar caso algo saísse do seu controle.
Como um bom gerente de projetos, foi ajustando alguns planos e se colocando algumas metas intermediárias, até que no octogésimo sexto dia, conseguiu chegar à saída de esgoto que precisava. Ela estava lá, disponível e desguarnecida. Apenas um empurrão o separava da sua liberdade. Nesse dia, voltou para dentro de sua cela com um sorriso estampado no rosto. Faria as coisas agora devagar. Sua última refeição em cativeiro a degustaria com calma, como se já estivesse na laje do seu barraco com vista para o mar.
No dia seguinte, com todos os presos em suas devidas celas, viu o movimento dos guardas no horário combinado em direção ao tal evento. Esperou ansioso até que se trancafiasse o último cadeado e engendrou seu plano. Entrou pela privada contorcendo-se pelo sifão, vocês não sabem a bitola dos canos de esgoto dessas instalações hoje em dia e o quanto um perito em fugas pode dobrar-se na direção de seu objetivo. Passou do esgoto para a rede pluvial, desta para as galerias e de lá para os corredores elétricos, como havia pensado. No fim de um corredor, as luzes entravam em fachos redondos por entre os buracos da pesada tampa de aço no teto do corredor. Subiu uma pequena escada e certificando-se que a luz era somente a da lua, forçou o pesado aço com os ombros, deslocando a tampa e, finalmente, fitou a amplitude do céu salpicado de estrelas.
No último impulso, aquele que damos para colocar o corpo todo para fora de um buraco onde não queremos estar, foi surpreendido por uma forte luz. O holofote havia sido ligado. Alguém o tinha delatado. Imóvel, não ouviu sirene, nem gritos de “pare” nem estampido de tiros, mas um coro dissonante de vozes conhecidas cantando “parabéns a você” enquanto as luzes da festa ao ar livre acendiam e revelavam qual era o inusitado evento em que guardas estariam no dia de seu aniversário.
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