Minha segunda incursão no Festival do Rio foi bem melhor do que a primeira. Fui assistir José & Pilar, documentário que mostra o relacionamento do português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, com a jornalista e ativista espanhola Pilar del Río. E as primeiras impressões acontecerem mesmo antes de começar a ser projetado: 160 pessoas na sala (aliás, belo lugar o Cine Glória) entre senhorinhas, jovens moderninhos, filósofos, patricinhas e gente normal que nem eu (ou não). Achei a frequencia bem eclética, o que nos dá uma pista sobre a abrangência da obra do Saramago, as boas críticas que vem tendo e a qualidade do filme em si.
Antes de falar sobre esse filme, devo contar sobre a primeira incursão no Festival. O filme: Atrações Perigosas, dirigido e estrelado por Ben Affleck. Ok, ok...eu sabia que era estrelado mas não sabia que era dirigido. E foi exatamente esse o pior erro do filme que conta a história de uma gang de Boston especializada em assaltos a bancos e carros-forte. O protagonista vive uma crise existencial e decide parar depois do próximo golpe. Algo dá errado, a gang tem que seqüestrar a gerente do banco (coisa que nunca fizeram) e a gerente do banco mora no mesmo bairro que eles. Encurtando a estória, mocinho e mocinha se apaixonam, mocinha descobre que mocinho é do mal, mocinho tenta se desvencilhar das más amizades e não consegue, mata todo mundo, foge e deixa a grana do assalto pra mocinha fazer caridade. Fim. É isso. Apesar do bom argumento, é chato, bobo e mal interpretado.
Bem, voltando ao que interessa, José & Pilar consegue captar uma conexão que só uma relação de amor constrói. Quando pensamos num escritor, tendemos a imaginar uma vida apaixonante, criativa, sem rotinas e completamente entregue aos devaneios que, devidamente burilados, viram frases inesquecíveis. Pois o filme mostra uma vida literária atribulada, cheia de compromissos chatos, longos e aborrecidos. Viagens longas, doença, família e tudo o que há de mais comum na sua e na minha vida. A diferença é que essa vida é retratada sendo vivida por um dos personagens mais lúcidos da história mundial e uma mulher ativa, perseverante e amorosa do lado dele.
Saramago é uma figura icônica. Jornalista, ateu convicto e comunista, viveu sua vida sob esses conceitos e é totalmente compreensível que só se tenha libertado para o amor com a aproximação da morte. E, resultado dessa lucidez ímpar, seu amor é de uma entrega que não compromete suas convicções e, resultado talvez da idade, maduro o suficiente para não ser baseado simplesmente na paixão. Pilar, nessa história, vive uma paixão amorosa. A paixão que se traduz no fazer, no construir, no levar o marido que ama aos píncaros do reconhecimento por seu trabalho. É também uma entrega, mas feita como a tradução da sua própria personalidade e extrema capacidade de realização.
O documentário em si é pura poesia. Mesmo os momentos mais severos são tratados com leveza e, no fim das contas, traduzem um sentido como o próprio discurso do Saramago que não tenta convencer, mas apresenta argumentos sustentados e fortes o suficiente para tanto. A dinâmica do filme nos mostra o equilíbrio entre o plácido desvelar de verdades seguras e, de certa forma, melancólicas do escritor e a vitalidade, o trabalho duro e o idealismo da jornalista, mesmo sob todas as críticas de oportunismo que ela sofre. Em um dado momento, ocorre uma discussão entre os dois sobre a eleição de Obama (que ele defende e ela critica, apoiando Hillary Clinton como representando dos direitos e davida da mulher). Impagável.
Fica então a dica para quem não assistiu. Parece que o filme entrará em cartaz no grande circuito. Mais uma prova de que, mesmo sendo documentário, o longa é de interesse geral e irrestrito. E, para completar, segua um link para um curta de animação baseado na obra A Maior Flor do Mundo.
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