1 de outubro de 2010

A última gota

Na última vez que estive aqui, lembro-me, também não havia ninguém. Ouvia, vindo de algum lugar, um triste murmúrio que, agora pensando melhor, poderia estar vindo de mim mesmo. Não foi fácil chegar aqui novamente, pois muito tempo já se passara desde a última visita e a paisagem parecia mais desolada e mais árida, sem muitos pontos de referência. Vi ao longe minha consciência sob a forma de minha própria silhueta, uma sombra de mim mesmo me guiando para onde deveria ir e fui.


Vendo-me aproximar, pegou na enxada e começou a cavar. Apesar do frio, o vulto pingava de suor sobre a terra ressecada. Era um esforço revolver aquele chão e a poeira subia fazendo-me apertar os olhos e liberar as lágrimas. Às vezes tossia sem saber se a causa era a poeira ou o choro.

Quando o buraco já estava na altura dos joelhos ouvimos o barulho que se faz quando se bate em algo oco. Ele ergueu-se, secou a testa com as costas das mãos e foi retirando o pouco da terra que cobria o baú de madeira a cinco palmos abaixo de onde eu estava.

Com dificuldade, nos ajudamos a parir da terra seca o grande caixote. Nós éramos as parteiras, mas gritávamos a dor das mães. As ripas enegrecidas pelo tempo ainda se mantinham invioladas tamanho cuidado que tive em fechar qualquer fresta. Aos poucos e depois, eu mesmo me lembraria de como passei anos trabalhando nesse esquife, cada prego e cada entalhe exatamente onde deveriam estar.

O homem comigo me estendeu um pé-de-cabra. Ele já tinha trabalhado e sofrido demais, era eu quem deveria me sujar e suar a partir de agora. Com dificuldade fui empurrando a dura língua bifurcada do artefato contra o baú. A madeira estalava e reverberava como se meus fossem meus próprios ossos estalando.

Por fim, abri-o todo e lá estava eu, deitado de olhos fechados, braços cruzados e mãos espalmadas sobre o peito. Não era exatamente a fisionomia mais jovem que vira da última vez que fechei antes de deixá-lo, mas era como se me visse num espelho agora. E quando o ar se sugeriu sobre as narinas do eu deitado, ele tossiu e uma grande nuvem cinza subiu crescendo e tomando todo o céu com a própria revolução.

Eu-deitado então abriu os olhos verdes piscando várias vezes sob os cílios esbranquiçados de pó. Não agüentou a forte luminosidade e, levantando-se, se manteve também com os olhos cerrados. Um silêncio imóvel seguiu-se, como um segundo antes de o maestro ordenar o primeiro movimento de uma sinfonia.

Agora éramos três: eu, eu-deitado agora de pé e minha consciência sem mais ferramentas. Não nos preocupamos em tapar o buraco, assim como não catam os abutres os restos das carcaças que comem. Sabem que a natureza agirá e, em algum momento, a chuva cairá ou a terra sacudirá o terreno sozinha. Por isso lá deixamos buraco e caixão aberto como provas de que ali houve uma exumação. Nos demos os braços caminhando de volta para o lugar de onde viemos já sentindo os primeiros pingos daquela nuvem carregada que agora nos cobria, anunciando o fim de um ciclo. Era só esperar que a última gota caísse para que se iniciasse o próximo.

Um comentário:

Bia disse...

Espero que os três consigam se entender.