27 de maio de 2004

...Continuação...

...Continuação...

Fiz com a cabeça como que satisfeito do assunto e voltei meus olhos para o livro, apesar de minha atenção dispersa pela conversa que acabara de escutar. Minutos depois entreguei a tarefa e fui novamente liberado para desfrutar de minhas férias.
Saí correndo da biblioteca em direção ao salão principal onde meu pai e Massif deveriam estar. Lá chegando encontrei o salão vazio e cruzei-o em direção ao promontório de onde meu pai fazia discursos no começo do plantio e no fim das colheitas. De lá se tinha uma bela visão da cidade e da vila. Eu não entendia por que uma cidade próspera e pacífica como a nossa necessitava de muros, ameias e exércitos. Achava que nosso exército simplório, como dizia meu pai, era uma guarda de honra exagerada para as missões diplomáticas da corte. Mesmo assim, os soldados vigiavam dia e noite o portão, as ameias e as passagens que se abriam para o campo, a oeste, e para a vila, a norte e a leste.
Aos poucos minha curiosidade foi se abrandando e a busca por meu pai e Massif pelo castelo tornou-se enfadonha. O dia estava quente e ensolarado, ótimo para um passeio à cavalo pela chapada que abria-se por todo o norte do reino. No meio da chapada havia um pequeno bosque e um enorme carvalho milenar, onde meus antepassados escreviam seus nomes e contavam estórias. Meu avô costumava levar meu irmão até em dias como este e eu sempre ficava no castelo. Por não ser o herdeiro da coroa, as atenções voltadas a mim eram sempre secundárias.
Resolvi então ir até lá, dessa vez para marcar meu nome no carvalho. Já era um jovem e, mesmo não sendo nem querendo a responsabilidade de ser Rei, era membro de uma família, pertencia àquela linhagem e, portanto, meu nome também pertencia ao grande carvalho.
Fui, então até a estebaria escolher um bom cavalo para essa importante missão.
Desci as escadas do castelo até o salão de festas e cruzei o hall até a entrada principal. Desci também a escadaria até o pátio e virei à esquerda brincando em pisar somente nas pedras azuladas que compunham o chão do pátio interno junto com as pretas, amareladas e cinzas.
Sempre olhando para baixo, prestando muita atenção na cor das pedras, percebi de repente uma grande quantidade de caixas à minha direita. Levantei o rosto e vi um grande movimento na estebaria: soldados com pacotes compridos envoltos em grossos panos, empregados levando lenha e roupas, para lá e para cá, pequenos carros trazendo vegetais, pessoas da cidade chegando com galinhas, porcos, cabras e ovelhas...um verdadeiro turbilhão de pessoas.
Fiquei observando de longe os escudeiros selando cada cavalo. Os maiores levavam quatro cestas, duas de cada lado. Os médios eram selados e levavam duas cestas, enquanto os mais leves eram apenas selados e adornados para levarem apenas pessoas. Em meio àquele movimento vislumbrei Massif discutindo com o cozinheiro que, aparentemente, tinha trazido utensílios demais.
- Schillaci!! Não vamos nos mudar! É apenas uma caravana! Largue metade desses ferros por aqui e leve apenas o necessário!
- Signore Massif...a performance de minha arte depende da qualidade de meus utensílio. Portanto, levarei todos que julgar necessário.
- Não vamos a uma competição de tortas, cozinheiro! Leve uma ou duas panelas e algumas conchas! E arrume-se logo.
- Me chamando assim il signore me ofende! Devia ter ficado em Gênova...Chefe Schillaci dei Farfalle.
- Que seja! Arrume suas coisas...- disse Massif cofiando o pequeno bigode e se afastando para cuidar de outras emergências.
Aproximei-me, enfim, da confusão e fui diretamente à direção de Schillaci, que me tratava sempre muito bem. O homem gordo, enormemente redondo, gabava-se de suas orígens italianas e de seu avô ter servido as melhores iguarias de Gênova. Falava muito, é verdade e também reclamava, xingava e blasfemava muito no lido com os empregados, mas comigo, apesar de reclamar, xingar e blasfemar da mesma forma, era sempre atencioso e sincero, me espremendo em troca de um elogio.
- Olá, Lati! Para que tantas panelas? – perguntei tocando seu ponto fraco.
- Dio cane! Só me faltava essa...mais um a intrometer-se na minha especialidade! – disse ele com as mãos estiradas para o alto e olhando como se falasse diretamente com alguma entidade – Não tens nada melhor para fazer do que controlar o número de panelas que coloco em minha mala?!
- Na verdade não... – disse para desconcertá-lo – E as panelas não são suas, são do Reino! – completei abrindo um belo sorriso.
- Per la Madonna! Definitivamente deveria ter ficado em Gênova! – disse me dando um leve cascudo – Dimme, ragazzo! O que queres?
- Para onde estão indo?
- Mas você não está sabendo? – disse ele fechando a fronde.
- O que? – respondi parecendo curiosíssimo.
Sua expressão tornou-se séria demais para a leve conversa que levávamos e sua resposta demorou um pouco para sair de sua boca. Quando respirava para começar a me revelar o que se passava, senti que desviava o olhar e olhava por cima dos meus olhos, como se alguém se aproximasse.
Senti que alguém vinha atrás de mim e virei-me imediatamente. Era Jean-Jacques e meu pai vindos do pátio do castelo. Meu pai trazia no rosto a mesma expressão com que lidava com os mais perigosos bandidos da região, enquanto Jean-Jacques ostentava uma bela escoriação logo abaixo do olho, mas mantinha-se altivo e corajoso como um mártir.
Vi que não deveria estar ali e baixei os olhos já me retirando, mas meu pai aproximou-se e colocou a mão em meu ombro. Agachou-se e olhou-me nos olhos.
- Vá para o seu quarto. Conversaremos em duas horas.
Levantou-se e olhou para Schillaci com aço nos olhos
- Disse alguma coisa ao garoto?
- Não, signore. Absolutamente. – respondeu o cozinheiro tão altivo quanto o próprio rei.
- Ótimo. Vá agora, Rodolpho. – completou sem olhar para mim.
Saí e entrei novamente no castelo. Passei ainda na biblioteca para pegar alguns livros que me ocupassem durante as duas horas de espera até a conversa com meu pai. Lá chegando encontrei novamente Maurice debruçado em sua usual montanha de livros.
- Pensei que estivesse indo para o lago, príncipe – disse ele solene. – Resolveu adiantar-se na leitura?
- Não. Meu pai quer me ver em duas horas no meu quarto. Preciso fazer alguma coisa enquanto espero – respondo desanimado.
- Não fique assim, Rodolpho – disse tentando acalentar-me com suas doces palavras – O Rei teve que tomar uma difícil decisão e é isso que ele quer dividir com você. Ele já o considera um adulto e quer dividir com você suas aflições.
Sem dar muita atenção ao vasto vernáculo que ostentava o meu tutor, peguei um livro qualquer na prateleira e saí da biblioteca, esboçando um breve sorriso em sua direção.
- Leve este exemplar, meu príncipe – disse chamando minha atenção – é o mais novo de todos. Acabei de recebê-lo e ainda não tive a oportunidade de lê-lo. Por que não começa a ler e discutimos os assuntos juntos mais adiante?
Realmente o assunto parecia mais interessante do que o manual de álgebra que tinha escolhido. Voltei até ele, troquei os livros e saí em silêncio.
Cheguei ao quarto e pedi ao pajem que me trouxesse um pouco de queijo e pão para comer enquanto lia as novidades da Alsácia. A única coisa que sabia da região era a qualidade das uvas e dos vinhos que lá se produziam. Lá se plantavam as uvas Gewustraminer que davam um bouquet frutado e doce aos vinhos. E também às tortas e aos pratos que lá se serviam. Para mim, a Alsácia não passava de uma grande uva verde que fazia escorrer seu suco até as ilhas do Sul.
Mas ao começar a ler os escritos daquele livro, alguma coisa no estilo da narrativa me chamou a atenção. Era descritiva demais, detalhista demais e, mais estranho, não tratava nem de vinhos nem de uvas. Interessado, comecei a folhear as páginas e abri em uma página em que se encontrava um mapa, provavelmente da região. O desenho aparecia recortado de setas vermelhas em descendente, como se espadas de sangue caíssem do Norte na direção do continente. Assim que comecei a analisar mais detalhadamente o que as setas indicavam, a porta do quarto se abriu e meu pai entrou, trazendo-me o queijo e o pão que eu havia pedido ao pajem.
- O que estás lendo, filho? – perguntou afável, como sempre.
- Alguma coisa sobre a Alsácia. – respondi fechando o livro e marcando a página do mapa - O que tens de tão urgente que motiva essa viagem, meu pai?
Consternado pela pergunta direta, meu pai falou após um suspiro – Rodolpho,estou mandando Jean-Jacques para a Espanha. Sua infantilidade passou de todos os limites e eu não posso mais me dar ao luxo de esperar que algum juízo cresça na cabeça de seu irmão. Por isso, escalei Massif para chefiar a delegação que levará Jean-Jacques até Toledo.
- Para a Academia Árabe – terminei sua fala.
- Sim. Como sabes?
- Sei que Massif estudou por lá. E seu do apreço que tens por ele e sua família. Apenas juntei as peças – respondi, despistando o fato de Maurice ter me informado.
- Então, se já sabes, já deves saber que vais com ele – disse sentando-se à cama.
- Como?! – solucei, quase engasgando a lasca de pão que mastigava – E Maurice? Não vou mais estudar com ele? Por que vais fazer isso comigo?
- Maurice o acompanhará. Ele continuará sendo o responsável por sua educação, mesmo em Toledo – completou sereno e decidido – Tente entender, filho...preciso de vocês como uma família. Separar você de seu irmão pode causar um rompimento definitivo entre vocês dois. Isso seria ruim para o reino e, principalmente, para mim. Portanto, está decidido. Faça suas malas. Assim que estiverem prontas, chame o pajem e me procure.
Por fim, beijou-me a cabeça e saiu da sala sem olhar para trás. Fiquei ainda um tempo bestificado, olhando para as tapeçarias que mantinham o meu quarto quente durante a noite. Olhei em volta tudo aquilo que parecia dever estar ali para sempre e não quis acreditar que seria exilado de tudo que eu tinha aprendido a amar e respeitar. Ainda mais! Para ir para um lugar onde nunca tinha ido, um lugar totalmente desconhecido e habitado por figuras tão estranhas quanto Massif que, apesar de sua boa postura, era completamente diferente de mim, de nós.
Ainda catatônico, vi a porta anunciar agora Maurice, que entrava com o semblante daquele que já sabia de tudo. Sentou-se à poltrona ao lado da cama e ficou a me olhar um tempo, consternado.
- Não é tão grave assim, meu príncipe... – tentou começar
- Você já sabia, não é mesmo, Maurice? – perguntei cerrando os olhos, inquisidor e Maurice respondeu com um sorriso sem graça – Por isso me falou tanto sobre Massif. Por que não me disse?
- Porque não estava decidido, Rodolpho – respondeu, chegando para frente na poltrona e usando meu nome como para diminuir a subserviência e colocar-se acima de mim – Seu pai já havia me confessado a vontade de internar seu irmão numa instituição de ensino estrangeira e me informou que, quando o momento chegasse, era seu desejo que você fosse com seu irmão. Eu sabia, mas não sabia quando.
Recostou-se novamente na poltrona e me observava as reações com atenção. – O que pensas dessa mudança, meu príncipe? – perguntou me sondando.
- Penso ser uma injustiça! – respondi como discípulo – Penso estar sendo punido pelos erros de meu irmão! Não quero ir para um lugar estranho, longe de tudo que eu prezo e conheço por causa das idiotices de Jean-Jacques! E, por fim, agora não sei se quero viajar com um traidor, como você! – terminei emburrando, cruzando os braços e olhando para o prato vazio em cima da cama.
– Meu príncipe – recomeçou Maurice com um sorriso fraterno – tu me acusas de uma coisa que não sou culpado e sabes disso. Quanto à decisão de seu pai, não tive a menor voz de interferência. Já estava decidido em seu íntimo. Quer um conselho? – disse chegando novamente perto da cama – Encare isso como uma grande viagem. Como se fossem as férias mais longas que você já teve. Prometo que, uma vez em Toledo, vamos amenizar o aprendizado teórico e daremos mais ênfase à prática e à diplomacia! O que achas? – arregalou os olhos e abriu um sorriso sincero, como que para me dar boas esperanças.
Olhei-o de soslaio, como que me protegendo de tamanha boa vontade e pensamento positivo. Mas por fim, descruzei os braços e sorri.
- Oh, Maurice! Se descumprir esta promessa, terei motivos para alcunhar-lhe de traidor para sempre!
- “Maurice, o traidor”. Não me parece que esse nome tenha lugar num livro de História! – Terminou a conversa causando-me gargalhadas.

To be continued...

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