14 de maio de 2004

Capítulo I

CAP I

- E então você pega essa ponta, passa por trás do cabresto e...pronto! – dizia meu pai sorridente ao ver a minha atenção com as fivelas das armaduras.

Eu tentava copiá-lo em tudo: seu porte altivo, seu jeito carinhoso de se dirigir às pessoas, seu andar calmo com as mãos atrás do corpo como que deixando seu coração ser penetrado por todos que lhe compartilhavam o dia-a-dia.

Era para mim um verdadeiro heróis, adorado por todos, cavalheiro, educado, bonito. Sabia ser severo quando necessário, mas sua severidade era justa como os pratos de uma balança. Fazia as coisas com fervor, apaixonado. Desde um jogo de xadrez à caça costumeira, sempre tinha a intenção da vitória. Sabia que, como Rei, tinha que se esforçar para ser o melhor e fazer o melhor para seus vassalos.
Tratava de todos os assuntos com bom-humor. Recebia mercadores em querela, viúvas necessitadas, jovens casais descuidados, bardos e músicos, mendigos e nobres. E os tratava de igual forma.

Gostava de passar as horas com ele, mas como bom pai, ele preocupava-se com a educação de seus filhos e tínhamos raros momentos a sós. Compartilhava a maioria do meu tempo com Maurice, meu tutor, e Jean-Jacques, meu irmão mais velho. Este último, sim, a preocupação maior de meu pai.

Desde que perdeu sua querida esposa, minha mãe, meu pai resolveu não mais se casar e preparar seus herdeiros para dar continuidade à realeza. Éramos a lembrança viva de nossa mãe para ele. Ele sempre a via no brilho de nossos olhos, escondida num sorriso ou refletida numa lágrima. Seus maiores orgulhos e seus maiores receios recaíam sobre Jean-Jacques.
- Pronto. Agora tome a espada e tente acertar o melão! – disse ele pendurando a fruta amarela num galho mais alto da árvore.
Tentando manter-me em pé e sentindo-me ridículo segurando uma espada de madeira, eu tentava em vão equilibrar-me com a cota pesada presa ao meu corpo. Com um sorriso, meu pai incentivava-me a persistir. Às vezes, declamava salmos que sabia de cor para me motivar. Em quase 60 anos de vida, meu pai deixara de ser simplesmente Gregório, filho do Visconde de Fournay, para se tornar Rei. Sua Majestade Gregório I.
- Mantenha as costas retas, filho...gire a lâmina acima de seu ombro...
- Desista, papai! Rodolpho nasceu para as artes e para a filosofia. – levantou-se Jean-Jacques de debaixo da árvore. Ignorando minhas tentativas, ele desembainhou sua espada e com um golpe só estraçalhou o melão, meu inimigo.
Sorrindo satisfeito, sorriu-me com desprezo, vendo-me limpar o suco que me cobria os cabelos. – Concentre-se nos livros, pirralho. É a sua vocação. – disse saindo do pátio e indo em direção ao castelo.
- Não dê ouvidos a ele, filho. Está chateado pois está de castigo. Vamos, tente novamente...

Os oito anos de idade que me separavam de meu irmão pareciam séculos. Nada lhe agradava tanto quanto atrapalhar meus momentos com papai. Parecia querer chamar-lhe a atenção, mas quando a tinha para si aproveitava-a mal provocando atritos desnecessários e discussões sobre banalidades.

Meu irmão era forte e alto. Parecia um leopardo com olhos sempre prontos para o bote. Nas poucas horas que tinha de folga, organizava caçadas com amigos e sempre voltava com presas demais, bêbado demais, exausto demais. Já passara do tempo de casar-se, mas sua dedicação à farra e aos excessos era tamanha que não deixava espaço em sua vida para preocupações com terras e dotes. Gostava de circular entre a nobreza da corte e seduzia jovens prometendo-lhes maravilhas que somente princesas teriam. Não raro, via-o dar presentes a desconhecidas ou novatas na corte para comprar-lhes os favores em seu quarto. E menos raro ainda, elas aceitavam crédulas de estarem construindo bases sólidas para fisgar um bom partido.

Ele sabia como lidar com bajuladores. Conseguia tudo o que queria. Certa feita, de troça, conseguiu de um conde uma piedade de vidro em que o conde gastara um terço de sua fortuna para encomendar e deu-a a uma meretriz de esquina, após uma noite de algazarras. Apesar de tudo, meu pai se esforçava para integrá-lo nos afazeres e nos acordos reais, mas sua atenção de jovem sempre o voltava para coisas menores e as reuniões acabavam por entediá-lo. Já havia viajado com meu pai para todos os cantos do reino, acompanhando meu pai em excursões comerciais, diplomáticas e festivas. Desnecessário dizer que as festivas eram suas preferidas.

Pus-me de pé mais uma vez e quando me preparava para degolar mais um melão alçado na copa da árvore, Maurice apareceu. Ele vinha da biblioteca, com certeza, pois trazia em seu colo vários tomos e pequenos livros encapados com couro. Apesar de esguio, Maurice tinha força suficiente para carregar todos os livros do mundo, seja nos seus braços ou em sua mente. Tinha os olhos fundos e os dedos grossos, vermelhos e cheios de calos de quem lê e copia incessantemente. Andava sempre com material de escrita em seus bolsos. Era um poeta, um grande sábio apesar da meia idade. Era mais novo que meu pai, mas este confiava em seu trabalho e em sua erudição de tal forma que raramente intervinha em suas aulas e suas exposições.
- Boa tarde, Majestade – disse ele polido e simpático – Desculpe a minha intromissão neste raro momento de reunião familiar, mas acredito que esteja na hora da leitura de nosso pequeno guerreiro. – completou com carinhosa ironia.
- Ainda não, pai! Ainda nem começamos!
- Vá, meu filho. Uma coisa de cada vez. Primeiro a cabeça...depois os braços! – disse passando a mão em meus cabelos.
Ajudou-me a desamarrar a armadura e guardou a espada de madeira. Quando tirava o melão da árvore, virou-se e fez uma última pergunta a Maurice.
- E Jean-Jacques...?
- Foi com amigos até o lago, Majestade.
- E a guarda?
- Logo atrás, Senhor. Os vi saindo pelo portão há algum tempo.
- Obrigado, Maurice. Podem ir agora. – abaixou-se e colocou o melão de volta na cesta com um suspiro.

Já nos afastávamos de meu pai quando um grupo de guardas saiu do castelo em sua direção. Eram guardas da cidade, não portavam armas nem armaduras, somente bastões de madeira.
- Majestade! Majestade! Venha conosco, por favor!!
- Pelo Sangue de Cristo! O que diabos está acontecendo?! – retumbou o Rei, já se pondo de pé.
- Jean-Jacques, Majestade... – disse um dos guardas um pouco embaraçado – Ele desapareceu!
- Mas ele não está no lago?! – disse o Rei, incrédulo – Já o procuraram por lá?
- Sim, Majestade. Não o encontramos, no lago, nem na cidade...acho que ele nos despistou. O grupo tinha sido designado para seguir meu irmão, como castigo por mais uma travessura que aprontara dias atrás.
- E a guarnição que o acompanhava?
- Teve um contratempo com um dos carros de boi que estão vindo do leste, Senhor.
- Mas a caravana tinha ordens para evitar a cidade...
Constrangido, o guarda replicou - Parece que este não sabia...

O Rei respirou fundo tentando acalmar seus nervos e tentando se convencer que isso tudo não era mais uma armação de seu filho.
- Preparem um grupo com cavalos e mande mensageiros até as aduanas nas estradas que saem do retiro. Quero as estradas fechadas até o encontrarmos. Encontre também Massif e diga-lhe que me encontre no salão de jantar em uma hora.

O grupo se dispersou mais que imediatamente e, largando a cesta no chão, o Rei veio a passos largos na direção da porta em que estávamos entrando.

Mesmo no retiro, Maurice me prendia por duas horas todo dia para praticar a escrita. O livro dessa semana era um pequeno compêndio grego sobre botânica o qual já havia copiado mais da metade.

To be continued...