Esta noite sonhei com um primeiro beijo. Você vinha longe cercada por uma aura colorida e suave, quase levitando. Seu vestido parecia fluido, tremulando em volta do corpo, escondendo e revelando curvas; às vezes frágeis, às vezes generosas.
Seus olhos – achas ardentes a marcar a face clara e sublimada – deixavam um rastro de minúsculas pedras preciosas como uma corte de fadas seguindo pelo caminho anunciando tua aproximação. Deles partia um olhar infinito, misterioso e corrosivo. Úmido apesar de petrificado no meu e prestes a derramar-se em júbilo.
Vinha com as mãos estendidas como quem distribui dádivas, compartilha calor e abençoa condenados. A sombra dos seios a marcar rijos o caimento do tecido evanescente. Finalmente parou diante de mim colocando-me em estado de epifania. Vi de muito perto a tempestade de cabelos escuros escorrendo em cachoeira sobre os ombros eternos e o colo macio.
Entreabertos como buracos-negros, nossos lábios se atraíram numa gravidade lasciva e o impacto de um milhão de estrelas me cegou. Não fechei os olhos e, mesmo cego, continuei vendo você.
Unimo-nos por um momento que passou longo demais para ser lembrado por inteiro e demasiadamente fugaz para ser aproveitado por completo. Corações pararam. Morri um pouco e renasci acordado, não querendo voltar para o sonho, mas me certificar de que seu primeiro beijo do dia fosse tão intenso e inesquecível quanto fora o meu.
O que lês quando não és forçado determina o que serás quando não tiveres escolha. - Oscar Wilde.
29 de outubro de 2010
25 de outubro de 2010
Celas de Aniversário
Pelas barras das celas do pavilhão cinco já havia corrido sangue demais. No piso de ardósia estavam marcadas como tatuagens de sangue indeléveis as tentativas frustradas de fugas e rebeliões passadas. Ainda era possível encontrar um dente perdido nos cantos dos degraus sob os corrimãos de aço fundido. Não havia cárcere naquele andar que não tivesse presenciado gritos de dor e choros sufocados de ira.
Sob essa atmosfera eram tratadas as tortas índoles daninhas à sociedade: oito detentos cujos crimes expiavam vestindo com o cinza de seus uniformes os longos dias cativos. As refeições frugais evitavam a preguiça, pois suas forças eram usadas para o trabalho na fábrica de tijolos que o presídio mantinha: seus esforços ajudariam a construir a sociedade e não mais destruí-la. Os banhos de sol eram curtos e as visitas escassas. Nesses dias específicos, seus corações empedernidos se amoleciam pela presença de um ente próximo (que poderia ser uma mãe arrependida ou um vizinho apiedado) ou pela simples ausência de alma que os quisesse bem ou mal. A sensação de abandono era trágica e, somada ao discurso dos psicoterapeutas que os acompanhavam, virava argumento motivador de mudanças de hábito, de amizades e de princípios.
O processo de domar essas pessoas com características tão extremas precisava utilizar-se de todas as oportunidades para a construção de símbolos que os fizessem produzir o esforço necessário para a mudança. Se um filme era projetado numa seção de cinema, sua mensagem deveria ter um conteúdo construtivo para o processo. A biblioteca exclusiva do pavilhão cinco encerrava obras de superação e perseverança. Uma orquestrada lavagem cerebral era posta em prática naquele pavilhão com resultados mais do que comprovados.
Nas paredes dos corredores de acesso às celas, rostos expunham esse sucesso. Albely de Souza, condenado a 19 anos de reclusão por tráfico de estupefacientes. Atual proprietário do hotel Alma Peregrina. Caetano Morais, condenado a 16 anos de reclusão por utilização de inimputáveis para prática de homicídio doloso. Atual chef do restaurante Ponte do Amanhã. E muitos, muitos outros exemplos de correção conseguidos pela instituição penal.
Os oito apocalípticos aspirantes a integrados, atuais moradores transitórios do pavilhão cinco, lutavam diariamente contra suas inclinações para, um dia, terem seus retratos pendurados naquelas paredes. Mas um deles pretendia algo diferente. Algo que o elevasse à condição transcendente de messias salvador.
Condenado por formação de quadrilha, uma condenação aparentemente menor em comparação às dos outros detentos, Ramiro foi o responsável pela organização criminal mais longeva e violenta do bairro onde morava. Sob seu comando estiveram onze meliantes responsáveis por crimes das mais diversas naturezas. Era um líder nato e, como tal, tinha a eloqüência necessária para aliciar tanto marginais quanto almas retas para seus esquemas. Conhecia a todos e mantinha-os perto fazendo-os acreditar que eram seus amigos. Era muito bom nisso.
Com sua capacidade ímpar de angariar informações, Ramiro descobriu que haveria algum evento interno daqui a três meses. Seu raciocínio rápido cruzou dois dados importantes que culminariam numa fuga perfeita: distração no mês de seu aniversário. Sairia da cadeia e comemoraria seus vinte e sete anos dentro do seu antigo covil, já preparando o próximo golpe.
Pôs mãos à obra e levantou o necessário: mapas, plantas, bilhetes, favores e concessões, tudo foi feito. Desenhou o plano e o caminho que faria através dos dutos de esgoto, as galerias pluviais e os corredores elétricos por sob a carceragem. Pronto. Precisaria de exatamente oitenta e sete dias entre o início das operações e a saída ao ar livre no dia do seu aniversário.
Apenas os mais confiáveis colegas de presídio sabiam do planejamento. Por mais que se sentisse auto-suficiente, teria que compartilhar algumas informações para conseguir privilégios e, no fundo, se sentir seguro, mas, principalmente, para ter de quem se vingar caso algo saísse do seu controle.
Como um bom gerente de projetos, foi ajustando alguns planos e se colocando algumas metas intermediárias, até que no octogésimo sexto dia, conseguiu chegar à saída de esgoto que precisava. Ela estava lá, disponível e desguarnecida. Apenas um empurrão o separava da sua liberdade. Nesse dia, voltou para dentro de sua cela com um sorriso estampado no rosto. Faria as coisas agora devagar. Sua última refeição em cativeiro a degustaria com calma, como se já estivesse na laje do seu barraco com vista para o mar.
No dia seguinte, com todos os presos em suas devidas celas, viu o movimento dos guardas no horário combinado em direção ao tal evento. Esperou ansioso até que se trancafiasse o último cadeado e engendrou seu plano. Entrou pela privada contorcendo-se pelo sifão, vocês não sabem a bitola dos canos de esgoto dessas instalações hoje em dia e o quanto um perito em fugas pode dobrar-se na direção de seu objetivo. Passou do esgoto para a rede pluvial, desta para as galerias e de lá para os corredores elétricos, como havia pensado. No fim de um corredor, as luzes entravam em fachos redondos por entre os buracos da pesada tampa de aço no teto do corredor. Subiu uma pequena escada e certificando-se que a luz era somente a da lua, forçou o pesado aço com os ombros, deslocando a tampa e, finalmente, fitou a amplitude do céu salpicado de estrelas.
No último impulso, aquele que damos para colocar o corpo todo para fora de um buraco onde não queremos estar, foi surpreendido por uma forte luz. O holofote havia sido ligado. Alguém o tinha delatado. Imóvel, não ouviu sirene, nem gritos de “pare” nem estampido de tiros, mas um coro dissonante de vozes conhecidas cantando “parabéns a você” enquanto as luzes da festa ao ar livre acendiam e revelavam qual era o inusitado evento em que guardas estariam no dia de seu aniversário.
Sob essa atmosfera eram tratadas as tortas índoles daninhas à sociedade: oito detentos cujos crimes expiavam vestindo com o cinza de seus uniformes os longos dias cativos. As refeições frugais evitavam a preguiça, pois suas forças eram usadas para o trabalho na fábrica de tijolos que o presídio mantinha: seus esforços ajudariam a construir a sociedade e não mais destruí-la. Os banhos de sol eram curtos e as visitas escassas. Nesses dias específicos, seus corações empedernidos se amoleciam pela presença de um ente próximo (que poderia ser uma mãe arrependida ou um vizinho apiedado) ou pela simples ausência de alma que os quisesse bem ou mal. A sensação de abandono era trágica e, somada ao discurso dos psicoterapeutas que os acompanhavam, virava argumento motivador de mudanças de hábito, de amizades e de princípios.
O processo de domar essas pessoas com características tão extremas precisava utilizar-se de todas as oportunidades para a construção de símbolos que os fizessem produzir o esforço necessário para a mudança. Se um filme era projetado numa seção de cinema, sua mensagem deveria ter um conteúdo construtivo para o processo. A biblioteca exclusiva do pavilhão cinco encerrava obras de superação e perseverança. Uma orquestrada lavagem cerebral era posta em prática naquele pavilhão com resultados mais do que comprovados.
Nas paredes dos corredores de acesso às celas, rostos expunham esse sucesso. Albely de Souza, condenado a 19 anos de reclusão por tráfico de estupefacientes. Atual proprietário do hotel Alma Peregrina. Caetano Morais, condenado a 16 anos de reclusão por utilização de inimputáveis para prática de homicídio doloso. Atual chef do restaurante Ponte do Amanhã. E muitos, muitos outros exemplos de correção conseguidos pela instituição penal.
Os oito apocalípticos aspirantes a integrados, atuais moradores transitórios do pavilhão cinco, lutavam diariamente contra suas inclinações para, um dia, terem seus retratos pendurados naquelas paredes. Mas um deles pretendia algo diferente. Algo que o elevasse à condição transcendente de messias salvador.
Condenado por formação de quadrilha, uma condenação aparentemente menor em comparação às dos outros detentos, Ramiro foi o responsável pela organização criminal mais longeva e violenta do bairro onde morava. Sob seu comando estiveram onze meliantes responsáveis por crimes das mais diversas naturezas. Era um líder nato e, como tal, tinha a eloqüência necessária para aliciar tanto marginais quanto almas retas para seus esquemas. Conhecia a todos e mantinha-os perto fazendo-os acreditar que eram seus amigos. Era muito bom nisso.
Com sua capacidade ímpar de angariar informações, Ramiro descobriu que haveria algum evento interno daqui a três meses. Seu raciocínio rápido cruzou dois dados importantes que culminariam numa fuga perfeita: distração no mês de seu aniversário. Sairia da cadeia e comemoraria seus vinte e sete anos dentro do seu antigo covil, já preparando o próximo golpe.
Pôs mãos à obra e levantou o necessário: mapas, plantas, bilhetes, favores e concessões, tudo foi feito. Desenhou o plano e o caminho que faria através dos dutos de esgoto, as galerias pluviais e os corredores elétricos por sob a carceragem. Pronto. Precisaria de exatamente oitenta e sete dias entre o início das operações e a saída ao ar livre no dia do seu aniversário.
Apenas os mais confiáveis colegas de presídio sabiam do planejamento. Por mais que se sentisse auto-suficiente, teria que compartilhar algumas informações para conseguir privilégios e, no fundo, se sentir seguro, mas, principalmente, para ter de quem se vingar caso algo saísse do seu controle.
Como um bom gerente de projetos, foi ajustando alguns planos e se colocando algumas metas intermediárias, até que no octogésimo sexto dia, conseguiu chegar à saída de esgoto que precisava. Ela estava lá, disponível e desguarnecida. Apenas um empurrão o separava da sua liberdade. Nesse dia, voltou para dentro de sua cela com um sorriso estampado no rosto. Faria as coisas agora devagar. Sua última refeição em cativeiro a degustaria com calma, como se já estivesse na laje do seu barraco com vista para o mar.
No dia seguinte, com todos os presos em suas devidas celas, viu o movimento dos guardas no horário combinado em direção ao tal evento. Esperou ansioso até que se trancafiasse o último cadeado e engendrou seu plano. Entrou pela privada contorcendo-se pelo sifão, vocês não sabem a bitola dos canos de esgoto dessas instalações hoje em dia e o quanto um perito em fugas pode dobrar-se na direção de seu objetivo. Passou do esgoto para a rede pluvial, desta para as galerias e de lá para os corredores elétricos, como havia pensado. No fim de um corredor, as luzes entravam em fachos redondos por entre os buracos da pesada tampa de aço no teto do corredor. Subiu uma pequena escada e certificando-se que a luz era somente a da lua, forçou o pesado aço com os ombros, deslocando a tampa e, finalmente, fitou a amplitude do céu salpicado de estrelas.
No último impulso, aquele que damos para colocar o corpo todo para fora de um buraco onde não queremos estar, foi surpreendido por uma forte luz. O holofote havia sido ligado. Alguém o tinha delatado. Imóvel, não ouviu sirene, nem gritos de “pare” nem estampido de tiros, mas um coro dissonante de vozes conhecidas cantando “parabéns a você” enquanto as luzes da festa ao ar livre acendiam e revelavam qual era o inusitado evento em que guardas estariam no dia de seu aniversário.
21 de outubro de 2010
Verdades
Venho revirando minha vida à procura de verdades e a única que encontrei até agora é que, por mais eternas que possam parecer, as verdades são mesmo é transitórias.
São transitórias porque nós não somos sempre os mesmos. Enganamo-nos querendo que as verdades se mantenham as mesmas tentando buscar uma coerência que a vida em si não tem. Teimamos em acreditar nelas mesmo quando elas zombam da gente já dentro do túmulo, mortas e enterradas.
Minhas verdades hoje são mais reflexo do que eu sinto do que dos meus pensamentos racionais. Se sentir raiva, essa é verdadeira. Quando passa a raiva e sinto afeto, esse é verdadeiro. Verdades absolutas são colunas dóricas em ruínas. Lindas e nos fazem refletir sobre o passado, mas são vítimas de uma tirânica obsolescência.
Verdade, verdade mesmo, é o que nos move a fazer coisas. Por isso, verdade é sentimento. Verdade se manifesta no tremor nas pernas e na contração no abdome. Quase podemos tocar a tensão no ar.
A coerência da vida ou esse prolongamento da vida útil de uma verdade só é possível com a manutenção do sentimento. O silêncio é árido e só espinho se cria nesse ambiente. Fazer uma verdade florescer diversas vezes ao longo da vida é uma questão de regar o sentimento que a sustenta. Essa água pode ser feita de saliva ou lágrimas, mas o importante é que esteja sempre fresca. Cabe-nos escolher quais verdades valem à pena serem regadas e quais devem secar e dar lugar a novas.
São transitórias porque nós não somos sempre os mesmos. Enganamo-nos querendo que as verdades se mantenham as mesmas tentando buscar uma coerência que a vida em si não tem. Teimamos em acreditar nelas mesmo quando elas zombam da gente já dentro do túmulo, mortas e enterradas.
Minhas verdades hoje são mais reflexo do que eu sinto do que dos meus pensamentos racionais. Se sentir raiva, essa é verdadeira. Quando passa a raiva e sinto afeto, esse é verdadeiro. Verdades absolutas são colunas dóricas em ruínas. Lindas e nos fazem refletir sobre o passado, mas são vítimas de uma tirânica obsolescência.
Verdade, verdade mesmo, é o que nos move a fazer coisas. Por isso, verdade é sentimento. Verdade se manifesta no tremor nas pernas e na contração no abdome. Quase podemos tocar a tensão no ar.
A coerência da vida ou esse prolongamento da vida útil de uma verdade só é possível com a manutenção do sentimento. O silêncio é árido e só espinho se cria nesse ambiente. Fazer uma verdade florescer diversas vezes ao longo da vida é uma questão de regar o sentimento que a sustenta. Essa água pode ser feita de saliva ou lágrimas, mas o importante é que esteja sempre fresca. Cabe-nos escolher quais verdades valem à pena serem regadas e quais devem secar e dar lugar a novas.
18 de outubro de 2010
Nova Iorque
Participo de um grupo de leitura com o objetivo de mostrar meus textos para um seleto grupo de autores mais experientes do que eu e, com as críticas, torná-los mais palatáveis a vocês, meus três leitores.
A maioria dos partcipantes escreve humor. Não é muito a minha praia, mas imbuído do espírito de colocar minha cara e minha caneta à tapa, escrevi logo para o primeiro encontro do grupo esse breve conto baseado em fatos reais, ou melhor, em uma narrativa de um amigo sobre um episódio que realmente aconteceu. Ele que me perdoe, mas queria muito anexar ao texto as caras que ele faz quando conta essa história. Não dando, aí vai:
Nova Iorque
Blue era a cor da mala que Luis acabara de despachar no check-in do aeroporto. Estava feliz da vida por ter conseguido juntar o dinheiro necessário para embarcar nessa que era a viagem dos seus sonhos: Estados Unidos. Sabia que a viagem seria solitária, mas nada tirava sua empolgação.
Desde sempre tinha curiosidade de conhecer Nova Iorque. Sabia de cor a localização das ruas que eram citadas nos filmes da TV. Tinha um mapa onde apontava os lugares como a Magnólia Bakery, melhor apple pie de NY, lá na Bleecker Street e o DeWitt Clinton Park onde disfrutaria de um passeio sossegado à margem do rio logo ali entre as 52nd e a 54th street. Mas gabava-se mesmo era de seu inglês. Sua meta era falar tão naturalmente que ninguém o identificasse como estrangeiro. Queria ter a fluidez de um cidadão novaiorquino e se esforçava tanto para falar da maneira que lhes é peculiar que chegou a se cadastrar em um desses programas de troca de cartas para se corresponder com um nativo e aprender as gírias e os palavrões diretamente dele. Era encantador ouvi-lo dizer motherfucker.
Quando juntou todo o dinheiro necessário, foi até uma agência de turismo reservar o pacote New York, New York: 4 dias e 3 noites com vista para o rio Hudson. Imperdível. O problema agora era segurar a ansiedade. Ninguém mais agüentava Luis gastando seu inglês com tudo. Não era difícil escutar um amazing quando algo o agradava ou um Oh, my! quando espantado.
Enfim chegou o dia do embarque e, como dito pelo próprio Luis insone, couldn’t sleep at all. O check-in correu bem. O embarque foi ótimo. Luis reservou uma poltrona na janela pois queria ver a cidade se descortinando aos poucos sob as nuvens. Estava absorto nesse pensamento com o avião já no ar quando foi interrompido pela aeromoça:
- Rélougentoumanduiuuantiuaitiuain?
Luis não se fez de rogado e emendou quase instantaneamente, pedindo que a aeromoça repetisse a frase pois não tinha prestado attention:
- Duiu-uanti-uaitiuain?
Nervoso, Luis hesitou um pouco mas pediu novamente que repetisse:
- Duiu-uantuaiti-uain?
A maioria dos partcipantes escreve humor. Não é muito a minha praia, mas imbuído do espírito de colocar minha cara e minha caneta à tapa, escrevi logo para o primeiro encontro do grupo esse breve conto baseado em fatos reais, ou melhor, em uma narrativa de um amigo sobre um episódio que realmente aconteceu. Ele que me perdoe, mas queria muito anexar ao texto as caras que ele faz quando conta essa história. Não dando, aí vai:
Nova Iorque
Blue era a cor da mala que Luis acabara de despachar no check-in do aeroporto. Estava feliz da vida por ter conseguido juntar o dinheiro necessário para embarcar nessa que era a viagem dos seus sonhos: Estados Unidos. Sabia que a viagem seria solitária, mas nada tirava sua empolgação.
Desde sempre tinha curiosidade de conhecer Nova Iorque. Sabia de cor a localização das ruas que eram citadas nos filmes da TV. Tinha um mapa onde apontava os lugares como a Magnólia Bakery, melhor apple pie de NY, lá na Bleecker Street e o DeWitt Clinton Park onde disfrutaria de um passeio sossegado à margem do rio logo ali entre as 52nd e a 54th street. Mas gabava-se mesmo era de seu inglês. Sua meta era falar tão naturalmente que ninguém o identificasse como estrangeiro. Queria ter a fluidez de um cidadão novaiorquino e se esforçava tanto para falar da maneira que lhes é peculiar que chegou a se cadastrar em um desses programas de troca de cartas para se corresponder com um nativo e aprender as gírias e os palavrões diretamente dele. Era encantador ouvi-lo dizer motherfucker.
Quando juntou todo o dinheiro necessário, foi até uma agência de turismo reservar o pacote New York, New York: 4 dias e 3 noites com vista para o rio Hudson. Imperdível. O problema agora era segurar a ansiedade. Ninguém mais agüentava Luis gastando seu inglês com tudo. Não era difícil escutar um amazing quando algo o agradava ou um Oh, my! quando espantado.
Enfim chegou o dia do embarque e, como dito pelo próprio Luis insone, couldn’t sleep at all. O check-in correu bem. O embarque foi ótimo. Luis reservou uma poltrona na janela pois queria ver a cidade se descortinando aos poucos sob as nuvens. Estava absorto nesse pensamento com o avião já no ar quando foi interrompido pela aeromoça:
- Rélougentoumanduiuuantiuaitiuain?
Luis não se fez de rogado e emendou quase instantaneamente, pedindo que a aeromoça repetisse a frase pois não tinha prestado attention:
- Duiu-uanti-uaitiuain?
Nervoso, Luis hesitou um pouco mas pediu novamente que repetisse:
- Duiu-uantuaiti-uain?
E isso ocorreu mais umas duas ou três vezes até que o senhor sentado à poltrona da frente perdeu a paciência e levantando, berrou “PORRA, DO... YOU... WANT... A... WHITE... WINE? WHITE WINE! VINHO BRANCO, ANIMAL! VOCÊ QUER UM VINHO BRANCO?
6 de outubro de 2010
Ainda bem que não tenho herpes
Ainda bem que não tenho herpes. Acho uma efermidae cruel. Ainda mais aquelas que se manifestam devido a algum desequilíbrio emocional momentâneo. Explode sobre os lábios como sirenes de emergência denunciando o momento difícil de seu portador.
Se fosse comigo, minha boca seria uma eterna chaga, um alarme como esses das garagens dos prédios que disparam à noite e não param mais de tocar. Sou grato aos deuses que me ungiram com a bênção da calvície, já que todos devem carregar algum gatilho metabólico congênito e vitalício.
Nos piores momentos, então, posso, como dizem uns, "olear os cabelos e levantar a fronte". Bem, olear os cabelos nem tanto, mas posso recolher-me ao meu sofrimento e compartilhá-lo somente quem eu quiser. Ainda bem que não tenho herpes. Tenho privacidade.
Se fosse comigo, minha boca seria uma eterna chaga, um alarme como esses das garagens dos prédios que disparam à noite e não param mais de tocar. Sou grato aos deuses que me ungiram com a bênção da calvície, já que todos devem carregar algum gatilho metabólico congênito e vitalício.
Nos piores momentos, então, posso, como dizem uns, "olear os cabelos e levantar a fronte". Bem, olear os cabelos nem tanto, mas posso recolher-me ao meu sofrimento e compartilhá-lo somente quem eu quiser. Ainda bem que não tenho herpes. Tenho privacidade.
4 de outubro de 2010
Vi o amor em José & Pilar
Minha segunda incursão no Festival do Rio foi bem melhor do que a primeira. Fui assistir José & Pilar, documentário que mostra o relacionamento do português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura, com a jornalista e ativista espanhola Pilar del Río. E as primeiras impressões acontecerem mesmo antes de começar a ser projetado: 160 pessoas na sala (aliás, belo lugar o Cine Glória) entre senhorinhas, jovens moderninhos, filósofos, patricinhas e gente normal que nem eu (ou não). Achei a frequencia bem eclética, o que nos dá uma pista sobre a abrangência da obra do Saramago, as boas críticas que vem tendo e a qualidade do filme em si.
Antes de falar sobre esse filme, devo contar sobre a primeira incursão no Festival. O filme: Atrações Perigosas, dirigido e estrelado por Ben Affleck. Ok, ok...eu sabia que era estrelado mas não sabia que era dirigido. E foi exatamente esse o pior erro do filme que conta a história de uma gang de Boston especializada em assaltos a bancos e carros-forte. O protagonista vive uma crise existencial e decide parar depois do próximo golpe. Algo dá errado, a gang tem que seqüestrar a gerente do banco (coisa que nunca fizeram) e a gerente do banco mora no mesmo bairro que eles. Encurtando a estória, mocinho e mocinha se apaixonam, mocinha descobre que mocinho é do mal, mocinho tenta se desvencilhar das más amizades e não consegue, mata todo mundo, foge e deixa a grana do assalto pra mocinha fazer caridade. Fim. É isso. Apesar do bom argumento, é chato, bobo e mal interpretado.
Bem, voltando ao que interessa, José & Pilar consegue captar uma conexão que só uma relação de amor constrói. Quando pensamos num escritor, tendemos a imaginar uma vida apaixonante, criativa, sem rotinas e completamente entregue aos devaneios que, devidamente burilados, viram frases inesquecíveis. Pois o filme mostra uma vida literária atribulada, cheia de compromissos chatos, longos e aborrecidos. Viagens longas, doença, família e tudo o que há de mais comum na sua e na minha vida. A diferença é que essa vida é retratada sendo vivida por um dos personagens mais lúcidos da história mundial e uma mulher ativa, perseverante e amorosa do lado dele.
Saramago é uma figura icônica. Jornalista, ateu convicto e comunista, viveu sua vida sob esses conceitos e é totalmente compreensível que só se tenha libertado para o amor com a aproximação da morte. E, resultado dessa lucidez ímpar, seu amor é de uma entrega que não compromete suas convicções e, resultado talvez da idade, maduro o suficiente para não ser baseado simplesmente na paixão. Pilar, nessa história, vive uma paixão amorosa. A paixão que se traduz no fazer, no construir, no levar o marido que ama aos píncaros do reconhecimento por seu trabalho. É também uma entrega, mas feita como a tradução da sua própria personalidade e extrema capacidade de realização.
O documentário em si é pura poesia. Mesmo os momentos mais severos são tratados com leveza e, no fim das contas, traduzem um sentido como o próprio discurso do Saramago que não tenta convencer, mas apresenta argumentos sustentados e fortes o suficiente para tanto. A dinâmica do filme nos mostra o equilíbrio entre o plácido desvelar de verdades seguras e, de certa forma, melancólicas do escritor e a vitalidade, o trabalho duro e o idealismo da jornalista, mesmo sob todas as críticas de oportunismo que ela sofre. Em um dado momento, ocorre uma discussão entre os dois sobre a eleição de Obama (que ele defende e ela critica, apoiando Hillary Clinton como representando dos direitos e davida da mulher). Impagável.
Fica então a dica para quem não assistiu. Parece que o filme entrará em cartaz no grande circuito. Mais uma prova de que, mesmo sendo documentário, o longa é de interesse geral e irrestrito. E, para completar, segua um link para um curta de animação baseado na obra A Maior Flor do Mundo.
Antes de falar sobre esse filme, devo contar sobre a primeira incursão no Festival. O filme: Atrações Perigosas, dirigido e estrelado por Ben Affleck. Ok, ok...eu sabia que era estrelado mas não sabia que era dirigido. E foi exatamente esse o pior erro do filme que conta a história de uma gang de Boston especializada em assaltos a bancos e carros-forte. O protagonista vive uma crise existencial e decide parar depois do próximo golpe. Algo dá errado, a gang tem que seqüestrar a gerente do banco (coisa que nunca fizeram) e a gerente do banco mora no mesmo bairro que eles. Encurtando a estória, mocinho e mocinha se apaixonam, mocinha descobre que mocinho é do mal, mocinho tenta se desvencilhar das más amizades e não consegue, mata todo mundo, foge e deixa a grana do assalto pra mocinha fazer caridade. Fim. É isso. Apesar do bom argumento, é chato, bobo e mal interpretado.
Bem, voltando ao que interessa, José & Pilar consegue captar uma conexão que só uma relação de amor constrói. Quando pensamos num escritor, tendemos a imaginar uma vida apaixonante, criativa, sem rotinas e completamente entregue aos devaneios que, devidamente burilados, viram frases inesquecíveis. Pois o filme mostra uma vida literária atribulada, cheia de compromissos chatos, longos e aborrecidos. Viagens longas, doença, família e tudo o que há de mais comum na sua e na minha vida. A diferença é que essa vida é retratada sendo vivida por um dos personagens mais lúcidos da história mundial e uma mulher ativa, perseverante e amorosa do lado dele.
Saramago é uma figura icônica. Jornalista, ateu convicto e comunista, viveu sua vida sob esses conceitos e é totalmente compreensível que só se tenha libertado para o amor com a aproximação da morte. E, resultado dessa lucidez ímpar, seu amor é de uma entrega que não compromete suas convicções e, resultado talvez da idade, maduro o suficiente para não ser baseado simplesmente na paixão. Pilar, nessa história, vive uma paixão amorosa. A paixão que se traduz no fazer, no construir, no levar o marido que ama aos píncaros do reconhecimento por seu trabalho. É também uma entrega, mas feita como a tradução da sua própria personalidade e extrema capacidade de realização.
O documentário em si é pura poesia. Mesmo os momentos mais severos são tratados com leveza e, no fim das contas, traduzem um sentido como o próprio discurso do Saramago que não tenta convencer, mas apresenta argumentos sustentados e fortes o suficiente para tanto. A dinâmica do filme nos mostra o equilíbrio entre o plácido desvelar de verdades seguras e, de certa forma, melancólicas do escritor e a vitalidade, o trabalho duro e o idealismo da jornalista, mesmo sob todas as críticas de oportunismo que ela sofre. Em um dado momento, ocorre uma discussão entre os dois sobre a eleição de Obama (que ele defende e ela critica, apoiando Hillary Clinton como representando dos direitos e davida da mulher). Impagável.
Fica então a dica para quem não assistiu. Parece que o filme entrará em cartaz no grande circuito. Mais uma prova de que, mesmo sendo documentário, o longa é de interesse geral e irrestrito. E, para completar, segua um link para um curta de animação baseado na obra A Maior Flor do Mundo.
1 de outubro de 2010
A última gota
Na última vez que estive aqui, lembro-me, também não havia ninguém. Ouvia, vindo de algum lugar, um triste murmúrio que, agora pensando melhor, poderia estar vindo de mim mesmo. Não foi fácil chegar aqui novamente, pois muito tempo já se passara desde a última visita e a paisagem parecia mais desolada e mais árida, sem muitos pontos de referência. Vi ao longe minha consciência sob a forma de minha própria silhueta, uma sombra de mim mesmo me guiando para onde deveria ir e fui.
Vendo-me aproximar, pegou na enxada e começou a cavar. Apesar do frio, o vulto pingava de suor sobre a terra ressecada. Era um esforço revolver aquele chão e a poeira subia fazendo-me apertar os olhos e liberar as lágrimas. Às vezes tossia sem saber se a causa era a poeira ou o choro.
Quando o buraco já estava na altura dos joelhos ouvimos o barulho que se faz quando se bate em algo oco. Ele ergueu-se, secou a testa com as costas das mãos e foi retirando o pouco da terra que cobria o baú de madeira a cinco palmos abaixo de onde eu estava.
Com dificuldade, nos ajudamos a parir da terra seca o grande caixote. Nós éramos as parteiras, mas gritávamos a dor das mães. As ripas enegrecidas pelo tempo ainda se mantinham invioladas tamanho cuidado que tive em fechar qualquer fresta. Aos poucos e depois, eu mesmo me lembraria de como passei anos trabalhando nesse esquife, cada prego e cada entalhe exatamente onde deveriam estar.
O homem comigo me estendeu um pé-de-cabra. Ele já tinha trabalhado e sofrido demais, era eu quem deveria me sujar e suar a partir de agora. Com dificuldade fui empurrando a dura língua bifurcada do artefato contra o baú. A madeira estalava e reverberava como se meus fossem meus próprios ossos estalando.
Por fim, abri-o todo e lá estava eu, deitado de olhos fechados, braços cruzados e mãos espalmadas sobre o peito. Não era exatamente a fisionomia mais jovem que vira da última vez que fechei antes de deixá-lo, mas era como se me visse num espelho agora. E quando o ar se sugeriu sobre as narinas do eu deitado, ele tossiu e uma grande nuvem cinza subiu crescendo e tomando todo o céu com a própria revolução.
Eu-deitado então abriu os olhos verdes piscando várias vezes sob os cílios esbranquiçados de pó. Não agüentou a forte luminosidade e, levantando-se, se manteve também com os olhos cerrados. Um silêncio imóvel seguiu-se, como um segundo antes de o maestro ordenar o primeiro movimento de uma sinfonia.
Agora éramos três: eu, eu-deitado agora de pé e minha consciência sem mais ferramentas. Não nos preocupamos em tapar o buraco, assim como não catam os abutres os restos das carcaças que comem. Sabem que a natureza agirá e, em algum momento, a chuva cairá ou a terra sacudirá o terreno sozinha. Por isso lá deixamos buraco e caixão aberto como provas de que ali houve uma exumação. Nos demos os braços caminhando de volta para o lugar de onde viemos já sentindo os primeiros pingos daquela nuvem carregada que agora nos cobria, anunciando o fim de um ciclo. Era só esperar que a última gota caísse para que se iniciasse o próximo.
Vendo-me aproximar, pegou na enxada e começou a cavar. Apesar do frio, o vulto pingava de suor sobre a terra ressecada. Era um esforço revolver aquele chão e a poeira subia fazendo-me apertar os olhos e liberar as lágrimas. Às vezes tossia sem saber se a causa era a poeira ou o choro.
Quando o buraco já estava na altura dos joelhos ouvimos o barulho que se faz quando se bate em algo oco. Ele ergueu-se, secou a testa com as costas das mãos e foi retirando o pouco da terra que cobria o baú de madeira a cinco palmos abaixo de onde eu estava.
Com dificuldade, nos ajudamos a parir da terra seca o grande caixote. Nós éramos as parteiras, mas gritávamos a dor das mães. As ripas enegrecidas pelo tempo ainda se mantinham invioladas tamanho cuidado que tive em fechar qualquer fresta. Aos poucos e depois, eu mesmo me lembraria de como passei anos trabalhando nesse esquife, cada prego e cada entalhe exatamente onde deveriam estar.
O homem comigo me estendeu um pé-de-cabra. Ele já tinha trabalhado e sofrido demais, era eu quem deveria me sujar e suar a partir de agora. Com dificuldade fui empurrando a dura língua bifurcada do artefato contra o baú. A madeira estalava e reverberava como se meus fossem meus próprios ossos estalando.
Por fim, abri-o todo e lá estava eu, deitado de olhos fechados, braços cruzados e mãos espalmadas sobre o peito. Não era exatamente a fisionomia mais jovem que vira da última vez que fechei antes de deixá-lo, mas era como se me visse num espelho agora. E quando o ar se sugeriu sobre as narinas do eu deitado, ele tossiu e uma grande nuvem cinza subiu crescendo e tomando todo o céu com a própria revolução.
Eu-deitado então abriu os olhos verdes piscando várias vezes sob os cílios esbranquiçados de pó. Não agüentou a forte luminosidade e, levantando-se, se manteve também com os olhos cerrados. Um silêncio imóvel seguiu-se, como um segundo antes de o maestro ordenar o primeiro movimento de uma sinfonia.
Agora éramos três: eu, eu-deitado agora de pé e minha consciência sem mais ferramentas. Não nos preocupamos em tapar o buraco, assim como não catam os abutres os restos das carcaças que comem. Sabem que a natureza agirá e, em algum momento, a chuva cairá ou a terra sacudirá o terreno sozinha. Por isso lá deixamos buraco e caixão aberto como provas de que ali houve uma exumação. Nos demos os braços caminhando de volta para o lugar de onde viemos já sentindo os primeiros pingos daquela nuvem carregada que agora nos cobria, anunciando o fim de um ciclo. Era só esperar que a última gota caísse para que se iniciasse o próximo.
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