30 de dezembro de 2011

2012

Amanhecer sobre as dunas, anoitecer na praia. Flanar por Paris.
Ler um livro sob uma palmeira.
Sentir o vento no rosto.
Banho de chuva.
Deixar o pé molhar na água do rio.
Pitanga do pé e lambida de cachorro.
Abraço de mãe, de filho e de amigo.
Primeiro beijo.
Último pedaço.
Andar de mão dada.
Barulho de chuva. Cheiro de terra molhada.
Quando uma música diz o que você sempre quis dizer.
Flerte.
Chopp com amigos sem hora para acabar.
Andar descalço.
Acordar com beijo.
Pular muro. Jogar bola no asfalto.
Marcar um golaço. Defender um pênalti.
Fechar um negócio. Lançar um produto.
Dar presente. Botar a mesa.
Uma guitarra aguda. Um solo de violino.
A introdução da sua música preferida.
Ouvi-la de olhos fechados.
Risada de criança.
Ver seu time campeão no estádio.
Rodinha em show de metaleiro.
Ouvir declarações de amizade de seu amigo bêbado.
Cozinhar. Cheiro de refogado.
Jogar buraco bebendo vinho.
Sair do aeroporto numa cidade desconhecida.
Fazer amigos.
Escutas estórias.
Mudar de idéia. Ser genuinamente convencido.
Lua cheia. Lua minguante.
Identificar constelações.
Lareira e frio. Rimar.
Escrever uma carta a mão. Receber a resposta também a mão.
Picolé de uva. Ejetar do balanço.
Receber um elogio sincero. Abraço apertado.
Chorar de alegria.
Ler no ônibus.
Ouvir música no engarrafamento.
Brigadeiro.
Tirar a gravata.

Você entendeu o que eu quis dizer.

Esses são meus votos a você para o ano de 2012.

6 de dezembro de 2011

Sopa de passas

Na beira do prato, arrisca-se a mosca
Já sentia no ar o calor. O gosto, imaginava.
Sabia somente que hoje era sopa.

A aba era larga e mesmo em seis patas
suspirava de dor
a mosca, arriscada, a barriga roncava
ansiosa que estava para sentir-lhe o sabor

Seus olhos brilhavam e o nariz palpitante
adivinhava os temperos boiando ali
curcuma, cebola, coentro e passas,
um toque de trufas, seria trés chic

E a mosca abusava da sorte e do dono
que  não despertara ainda do sono
na beira da sopa planejou o pulo
Zumbiu de emoção e deu o mergulho

Nadou sobre o caldo, feliz e contente
e afundou-se no meio da piscina escaldante
submersa entre arroz comeu quanto quis
deixando essa vida contente e feliz 

mas agora, tarde demais, foi-se a mosca ao céu das moscas
ser precisar bater asas, afundou-se sem pressa
fantasiando-se passa, no fundo do prato, no fundo da boca
na boca do estômago do dono da sopa

28 de novembro de 2011

Fundo de mim


Um prado verde, uma campina
o vento e seu olhar de menina
cabelos em trança para não embaraçar

Corre, liberta, vestindo carmim
babados de renda
colar de jasmim

Fizeste um presente
e me deste sorrindo
suas mãos que tocaram no fundo de mim

Fita vermelha, papel colorido
caixinha com seda, anel de rubi
Abre um sorriso e foge do beijo
olhos que viram no fundo de mim

Me pede um abraço, caindo no chão
confusa em meus braços, o sim e o não
suspira baixinho, me dá um carinho
descobre um cadinho no fundo de mim

22 de novembro de 2011

Uma Grande Surpresa

A barriga vazia retorcia-se sob a camisa de Jairo. A tentação do furto era cada vez mais sufocante. Com frequência se deixava convencer da facilidade dessa escolha e da insensibilidade da vítima de dar-se conta da perda. Afinal, espírito virtuoso que sempre fora, escolheria algum lugar de extrema abundância para praticar o delito, justificando-se  no fato de que em lugar que muito há, o pouco que falta não se fará notar.

Protegida a alma sob o escudo da auto-sugestão, lá se foi Jairo emboscar sua presa. Perambulou pela cidade por algumas horas dando uma última chance à caridade humana, ainda lutando intimamente para não sucumbir à sua condição de faminto e, por conseguinte, desesperado, o que só lhe traria confusão ao raciocínio e risco às suas já fragilizadas integridades física e moral.

Como sempre, rumou para o bairro rico repetindo seu lema como um mantra, adepto que era desse tipo de prática zen. Era hora do almoço e o ar recendia à mistura de temperos, carnes e cozidos. Foi um duro golpe à pétrea força de vontade de Jairo que decidiu, então, entocar-se ao lado de uma reluzente garagem e, como uma serpente, esperar a hora certa do bote. Agachado na relva milimetricamente alinhada, Jairo escutou até que o tilintar dos talheres e o gorgolejar dos refrescos carbonatados terminasse, sinal claro de que os moradores já se haviam satisfeito. Movendo-se silenciosamente, entrou por um basculante e encontrou-se no banheiro social da casa. Aproveitou para tirar de si a sujeira, pelo menos aquela que levava às mãos, já que, além da confissão seguida de prece, ainda não inventaram canos e muito menos água, seja ela qual for, e não se deixem enganar pela benta, que leve consigo a sujeira da alma.

Com a confiança e o espírito renovados como só um borrifo de água gelada o faz, saiu do banheiro e andou pelo térreo agora vazio. Era comum naquele bairro que as famílias tirassem a sesta, ainda mais àquela época do ano quando o calor requer um par a mais de horas antes de ser encarado. Portanto, foi Jairo até a cozinha e, das baixelas que descansavam sobre a bancada de mármore posicionada como uma ilha de prazeres no meio da cozinha, fez-se um prato.

Comeu rápido e lambuzou-se. Satisfeito, lavou educadamente a louça sob um fio estreito de água da pia,  evitando que o barulho da ação afetasse a inação dos habitantes do lugar e começou a perambular pela casa vazia. Mexeu nos porta-retratos, cogitou ligar a TV, mas apenas experimentou o poder de ter os controles-remotos nas mãos enquanto espreguiçava na poltrona, folheou as revistas e desmarcou a Bíblia recostada no altar. Era hora de partir, pensou. O ajuste entre excesso e falta havia sido consumado, vingou-se intimamente da sociedade. Voltou então ao banheiro para completar o processo e usar uma das escovas elétricas que la havia junto com o dentifrício que prometia brancos absolutos, mas, como um leão que se joga à savana após encher de zebra ou gazela o bucho, entregando-se a uma indolência que só o poder de seu urro lhe confirma, Jairo aboletou-se ao trono que havia no pequeno banheiro e reinou, não como citado rei dos animais, mas como um homem no máximo de sua própria auto-proclamada majestade.

E ser rei nessas situações requer muito cuidado pois mesmo os órgãos internos podem amotinar-se. E foi o que aconteceu a Jairo, uma vez que ao ver-se naquela situação pretensamente segura mas, no fundo, imensamente delicada ouviu a sirene da revolução soando alto de dentro de seu ventre. E tão fortes retumbavam os tambores lá dentro que despertou a família lá no andar de cima que, prevenida na arte de manter o que lhes era posse, reuniu-se ao topo da escada com as melhores armas que puderam escolher entre as roupas de cama e as meias das gavetas. O mais novo, pela sua própria natureza, era o mais bem equipado levando aberta consigo a lâmina do canivete suíço. Pé ante pé, a família pôs-se escada abaixo numa proximidade corporal só comparável `as falanges espartanas ou aos abraços de Natal, todos ouvindo o gorgolejo gutural que vinha do banheiro de baixo.

Jairo não ouviu nada, preocupado que estava com o próprio estalar de tripas, e nem viu quando a família abria inadvertidamente a porta do banheiro onde, agora, além de ruídos, cheiros indesejáveis também ajudavam a gravar para sempre na memória o espetáculo dantesco que era Jairo, calças aos joelhos, meio corpo para fora, tentando fugir, do banheiro e da vergonha, pelo basculante.

14 de novembro de 2011

Centésimo post

O céu estava encoberto há dias, porém num abafamento digno de microondas. Até que numa quinta-feira, depois da novela, choveu.

Choveu como não chovia há tempos. Quando nos acostumamos às coisas de um jeito, fica difícil imaginar como precederíamos se fossem diferentes. Foi exatamente por isso que, por anos, meus pais postergavam a limpeza da calha de chuva da casa. Tudo bem, não os culpo, tarefa chata que é e que só percebemos bem sua importância no momento em que não podemos mais contar com ela. E não somos assim mesmo com tudo?

Pois bem, nessa chuvosa quinta-feira os céus decidiram mandar água além da conta da já comprometida capacidade da tal calha, o que levou a um transbordamento e, por fim, lagoas dentro dos cômodos da casa. No meu quarto o estrago foi grande. Móveis, carpete e roupas. Porém o maior dano e talvez o único irreparável tenha sido a pasta onde eu guardava o que escrevera até então ainda nos originais à mão em papel.

Comecei a escrever bem jovem como uma válvula de escape e um porto seguro, inseguro e ansioso que era (era?). E ali, naquela pasta, estavam relatos, rimas e estórias que não só mostravam a evolução de meu estilo (estilo?) mas (e muito mais) a minha própria.

Senti um aperto no peito ao ver as páginas - caderno, folhas sem pauta e guardanapos - chorando azul e borrando idéias, sentimentos e paisagens tão importantes para mim quanto a própria memória delas mesmas. Salvando o que podia, meti tudo num lugar seco e decidi que não perderia mais nada que escrevesse, por mais duvidosa que fosse a sua qualidade.

E foi então que surgiu a necessidade de guardar tudo fora do papel. Primeiro num lugar que fosse só meu, como merecem as coisas muito pessoais. Mas, aos poucos fui vencendo o pior dos críticos, eu mesmo, e abri acesso a quem quisesse poder navegar não por tudo, mas por onde o tempo já houvesse consolidado e pouca diferença faria a opinião dos outros.

Numa primavera há sete anos incluí os primeiros textos (textos?) - não sem um imenso crivo - e para comemorar o centésimo post deste espaço, tiro-lhes o pó e reapresento-os como os pioneiros e desbravadores deste Império das Letras.

Boa leitura.



18 de outubro de 2011

Os bêbados da destilaria

A destilaria ficava fechada com cadeado durante a noite para evitar que os bêbados da região a tomassem de assalto. O mestre-cachaceiro fora segurança de boate e levava ao coldre uma colt .45 com balas suficientes para escrever seu nome e sobrenome numa parede.


Propositalmente localizada no alto de uma montanha de difícil acesso, a destilaria funcionava a pleno vapor, enquanto brilhasse a luz do sol, compensando, numa produção acelerada, a falta do turno da noite. Como o almirante de um transatlântico, o mestre dava ordens e mexia manivelas controlando os fluxos e afluxos dos líquidos que perambulavam pelos tubos de cobre e vidro por todo o galpão como uma cama-de-gato.

O mestre-cachaceiro era o único que arriscava a pele passando a madrugada dentro da fábrica. Cansado sob o fuzil que levava às costas, fazia tudo com a atenção redobrada, pois àquelas horas podia ouvir ao longe o movimento dos bêbados sob a colina vomitando, maldizendo a vida e declamando poesias. Aqueles barulhos lhe causavam arrepios mesmo depois das dezenas de anos à frente da destilaria.

Na medida em que o sol subia os ajudantes se anunciavam batendo com a pesada aldrava de ferro nas grossas portas de madeira que o mestre abria remotamente com um clique no porteiro-eletrônico. Assim que chegavam, vestiam seus aventais. Só ali tinham coragem suficiente para envergá-los. Se fossem vistos em qualquer outro lugar, despertariam inveja e cobiça. Ali estavam seguros, suas identidades mantidas em segredo e seu trabalho minucioso muito bem recompensado.

Perto do final do expediente a tensão invariavelmente tomava conta do estabelecimento. Desligavam as máquinas e só se ouvia o leve borbulhar do suco nos latões. Lavavam o chão para que o odor não atraísse a praga trôpega e, antes de liberar os ajudantes, o mestre-cachaceiro reunia a todos em sua sala de troféus e dava as instruções da saída: lavar os aventais e os instrumentos de trabalho, jurar confidencialidade sobre o ofício que praticavam e nunca trocarem palavras ou olhares sequer entre si fora da fábrica. Era lei.

A sala era decorada com as carcaças empalhadas dos bêbados que haviam atentado contra a integridade da destilaria e do próprio mestre-cachaceiro. Sua colt e seu fuzil haviam abatido mais de duzentos bêbados e, naquela sala, alguns davam um silencioso testemunho dessa bravura.

Quando o sol se punha a um palmo do horizonte, os ajudantes eram liberados um a um. Cada qual tomava seu rumo de volta para casa e para suas mentiras: um era padeiro, o outro marceneiro. Evitavam colocar suas famílias em risco poupando seus queridos da preocupação e a si próprios da possibilidade de darem com a língua nos dentes. O destino de um ajudante descoberto poderia ser fatal.

Ao deixar o último ajudante sair, o mestre-cachaceiro fazia a ronda pela planta baixa verificando cada válvula e conta-gotas. Depois ia com seu armamento para a gávea no alto da torre de onde monitorava os bêbados que subiam a colina.

Mesmo parecendo inofensivos, os bêbados babavam por todo o pátio da destilaria e urravam cada vez mais forte ao verem o velho mestre longe do alcance. Juntando-se em grupos de cinco ou seis, os bêbados cheiravam o vão por baixo da porta e lambiam o tapete onde se via escrito “Bem-vindo”, obviamente não para eles. Não raro tentavam remover o pesado cadeado usando força bruta, seus dentes ou suas roupas. Batiam-se contra as paredes de pedra e amaldiçoavam o velho que permanecia inabalável por trás de seu pequeno arsenal.

Aos poucos, os bêbados que não ficavam por ali mesmo em coma alcoólico, desciam pela estrada íngreme de volta ao pé da colina e à difícil ressaca e amnésia do dia seguinte. O mestre, do alto da gávea e de sua sabedoria, não fazia juízos das pobres almas possuídas que se dispersavam. Apenas aguardava o movimento cessar para poder descansar. Um cochilo breve o bastava.

Ao primeiro canto de galo, o mestre despertava e recomeçava, com uma longa talagada do manjar não obsequiado aos bêbados na noite anterior, o dia ainda escuro.

9 de setembro de 2011

Não estava de férias

Queridos oito leitores.
Parece que foi em Agosto. Teias de aranha e estalactites nos posts desse blog. Porém, contra todas as percepções, entro de férias somente agora em Setembro.
Será mais doloroso para mim deixá-los órfãos do que para vocês deixarem-me não-lido.
E é exatamente por causa disso que eu saio prometendo voltar com a verve ficcionista que vocês querem ver (informação sem relevância estatística) ainda mais presente. Para que a saudade, combustível do reencontro, supere a dor da separação.

Até breve.

29 de julho de 2011

Je suis né il ya 10.000 ans

“Como alguém com mais de trinta, pretenso admirador da cultura dos anos 60 e 70 nunca tinha ouvido falar de Serge Gainsbourg!?”

“Como alguém cujos ídolos sempre foram figuras conturbadas, ambíguas e malditas nunca ouviu falar de Serge Gainsbourg!?”

“Como alguém que gosta de música, cinema e animação nunca tinha ouvido falar do filme Serge Gainsbourg – Vie Heroique (2010)!?”

Estas frases flanavam (para usar o termo francês) na minha cabeça enquanto saía do cinema. Minha ignorância sobre o protagonista teve a ajuda dos subtítulos um tanto quanto mercadológicos do filme tanto na versão em francês (“vida heróica”), que se apropria da infância do cantor na Paris ocupada pelos nazistas, apenas cerca de dez ou doze dos primeiros minutos; como na versão em português (“o homem que amava as mulheres”), talvez numa tentativa de surfar uma onda de um outro filme baseado numa trilogia editorial de sucesso. Confesso que imaginei uma ficção sobre um pianista maldito, numa Paris noir com pitadas daquele humor ácido francês e acabamento de quadrinhos em cores pastel, outra especialidade francesa. Enfim, me preparei para cento e vinte minutos de clichês.

E tal não foi minha surpresa ao deparar-me com a biografia de uma pessoa impressionante. Uma alma contorcida. Um artista fervoroso, de verve e presença inusitada. De postura agitadora, crítica e vanguardista, ansioso de rompimento com óbvio, do estático e do comum. Enfim, um provocador. Enquanto Jim Morrison agitava Los Angeles e morria em 1971, Serge Gainsbourg agitava a França e seguiu agitando até bem depois da década de 70, tendo deixado esta vida em 1981. E como as semelhanças não são apenas coincidências, ambos jazem eternamente no Pére Lachaise, em Paris.

O filme inicia-se mesmo com a infância, a iniciação na música através do pai, sua relação com as irmãs e o aspecto provocador que já dava o ar da graça, exemplificado na conversa dele, aos dez anos, com o chefe da polícia nazista que distribuía as estrelas amarelas aos judeus. Um pequeno manipulador. Impagável. Além de sua veia artística expressada pela pintura e a criação de personagens que, aliás, perfazem sua existência, inclinando-o uma hora para a vida reta e outra para a torta. Menção honrosa aqui para as animações e suas versões “reais” que o acompanham nos momentos-chave da sua vida/filme.

Afora os aspectos técnicos, Serge é interpretado por um efetivo sósia: Eric Elmosnino. Perfeito no papel. Feio, bruto, machista e ao mesmo tempo frágil, encantador e apaixonado. Consegue transparecer aquele ar blasé e constantemente irritado com seus olhos esbugalhados e orelhas de abano.

Brigitte Bardot também é bem representada por Laetitia Casta, mas não empolga. Quem empolga é Lucy Gordon e sua interpretação de Jane Birkin. Contundente em sua beleza frágil. Firme e doce ao mesmo tempo. Não fosse seu falecimento precoce (Lucy foi encontrada morta em seu apartamento em 2009), ela poderia estar figurando suas feições élficas outras estrelas de grande magnitude.

Por fim, Serge é como um Raul Seixas francês. Precursor de um estilo de vida rock’n’roll, easy rider sem sair do lugar, levando as relações e as sensações ao limite, mas com o atenuante de não estar envolvido com nenhuma seita oculta ou irmandade secreta: seus demônios eram seus próprios e sua salvação era a música, o excesso e os amores.

Numa França não muito amiga de filmes biográficos de suas grandes personalidades, Vie Heroique vem para juntar-se a outro clássico biográfico, Piaf, e continuar a formação da constelação francesa nesse universo essencialmente hollywoodiano.

6 de julho de 2011

Textos soltos

Às vezes uma idéia sorrateira passa tão rápido que a gente sente o cheiro, mas não consegue achar o rastro. Abaixo seguem os cheiros de algumas cujo rastro eu nunca mais achei.

***

Ela era uma bomba de efeito retardado. Suas palavras eram o pavio incendiário que percorria a distância que os separava. Quando estavam juntos, tudo explodia. Ela era fogo e ele pólvora.


***

Ele era tão bom com as metáforas que transformou sua própria vida em uma. Enxertava sonho nas situações reais como se romanceando fatos históricos. Deixava que a força das personagens tomasse conta da narrativa de sua vida pintando cútis pérsicas de sonho sobre as rugas e cicatrizes da realidade. Enganava-se de todas as maneiras possíveis.

***

Minguante ou crescente
o importante
é essa lua sorrindo pra gente

***

Imolo em liturgia minhas asas
Este sangue que escorre é para ti
Abro a boca e o sânscrito fala
Encapsulada, minha alma é para ti
Terás minha carne e minha presença
Por certo tema não esteja ali
Estarei divagando em eterno poema
À deriva em palavras que não são para ti

7 de junho de 2011

Poesia 14

Se matar é não morrer
e manter-se sob o malho
a alma incandescente
cospe faíscas no assoalho

Ao fazer de mim espada
na moldagem dura e seca
a vida que assopra o fogo
me obriga a amolecer

Deus é um ferreiro
dando fio a armas de guerra
cada anjo nos leva na aljava
e prende o Diabo debaixo da terra.

1 de junho de 2011

Poesia 13

Fecha o olho e vê
o que brilha nesse espaço
uma sombra e silhueta
refletores no palhaço

Cortina sobe, bordada e vermelha
um tropeço no picadero
a lágrima tatuada no rosto
cai contínua o ano inteiro

Travessuras e bobagens
fazem rir toda platéia
fecha o olho e vê
que o lobo em si é alcatéia

Abre o olho de vez
e apaga-se toda luz
uma penumbra fosca
fumaça e pólvora, prego e cruz

Nada mais há de se ver
quando a queda o corpo finaliza
estendido sob o coreto
o rosto pintado seca à brisa

24 de maio de 2011

Esperança

“Vamos dar o nosso sangue para salvar a menina Esperança”

“Curti” – pensou Gonzalo ao clicar no botão respectivo daquela rede social. A mensagem era dolorosa: uma escola havia sido invadida por um psicopata que se matou após alvejar treze crianças. Mas a sociedade se organizava para doar sangue aos feridos e principalmente à pequena Esperança, jovem matriculada na quarta série que, entre a vida e a morte, necessitava de sangue na UTI. Ela virou a imagem da tragédia.

Gonzalo, preparando-se para dormir, fechou o laptop decidido a ir até o instituto médico onde a menina estava internada. Após um período turbulento em sua vida, agora tentava colocar a cabeça no lugar e a ação voluntária parecia fazer sentido na lista de atitudes que passaria a ter daqui para frente.

Na manhã seguinte, Gonzalo cumpriu sua rotina: acordou, tomou café, banho, masturbou-se, escovou os dentes, vestiu-se e saiu à prática recém adotada do voluntariado. Como ainda era cedo, não pegou fila e foi encaminhado prontamente à sala de coleta.

Sentou-se e aguardou alguns minutos até que uma moça de seus vinte e poucos anos, jaleco branco e olhos amendoados entrou na sala com um sorriso. Gonzalo se ajeitou na cadeira desconfortável e respirou fundo valorizando o tórax e lendo no crachá dela “Enfermeira Lea”.

Lea deu um bom dia educado e foi descrevendo automática o procedimento enquanto arrumava o material necessário em cima da mesa. Gonzalo não prestou atenção em nada além do discreto decote que prometia seios proporcionais á estatura baixa e compleição justa da menina, pelo menos até ela perguntar seu nome.

Nesse instante, Gonzalo levantou os olhos mirando nos dela e embalou a resposta com seu sorriso mais comprido. A moça sorriu de volta e continuou:

- Sr. Gonzalo, vou fazer algumas perguntas para saber se o senhor esta apto a doar sangue para o nosso banco. Posso?

Instintivamente, Gonzalo responderia um lânguido “pode tudo”, mas limitou-se a dizer um “sim” cortês.

- Peso.

- 75kg

- Altura.

- 1,78cm

- Alergias?

- Não.

- Doença crônica?

- Não.

- Toma alguma medicação de uso constante?

- Não – mentiu lembrando-se da crescente freqüência com que agora consumia vaso-dilatadores.

- Tem alguma tatuagem?

- Não.

- Se masturba mais de uma vez por dia?


Gonzalo arregalou os olhos e demorou longos segundos para decidir o que responder. Por um lado queria muito cultivar o civismo e fazer sua parte na comoção social pela trágica situação da menina internada e não tinha noção se muito é bom ou ruim nesse caso. Por outro, não queria expor aquele hábito incompreendido àquela linda moça que, até onde sua percepção podia alcançar, havia respondido positivamente a seus flertes.
Mas ainda havia uma terceira alternativa:

- Hoje em dia, não – respondeu confiante e foi a vez de Lea desamendoar os olhos, arregalando-os.

- Desculpe. Não entendi – desconversou a menina e perguntou novamente – o que disse?

- Hoje em dia, não. Já houve épocas em que me masturbava três vezes ao dia. Mas me expunha a muitos riscos com a vespertina. Hoje faço uso desse artifício somente quando estou na dúvida se quero ou não sair com uma menina. Se após umazinha ainda estiver a fim de sair com ela, eu saio. Se não, fico em casa mesmo. Não troco uma boa descascada por qualquer mulher – terminou passando um dos braços por cima do encosto da cadeira sentindo-se mais à vontade, afinal era expert no assunto.

Sem saber como reagir, Lea só conseguiu ruborizar e quando já formulava uma resposta qualquer para fugir do assunto, um outro enfermeiro abriu a porta com tristeza e desolação no semblante pesado:

- Lea, suspende as coletas que a Esperança acabou de falecer.

A notícia pegou Gonzalo de calças arriadas. Literalmente. Uma vez que já se preparava para decidir se sairia ou não com Lea.

20 de maio de 2011

Babas

O urso magro saía da toca onde passou o inverno. Cansado de tanto dormir, ia equilibrando-se nas agora verdejantes árvores até a beira do rio que lhe chegava às narinas com o odor da vida.
Primeiro bebeu água, muita água, até que a sede morreu e a fome gritou das profundezas vazias do enorme estômago. Seus olhos seguiam a correnteza aflitos, fitando além da superfície. Pata ante pata até o meio do rio, o frio lhe obstando a consciência.
Gigante e frágil, quase vertendo lágrimas irracionais no limite da sobrevivência, o urso joga seu corpo sobre a truta e arranca e sacode no ar, como a comemorar sua conquista.
As escamas da truta brilham sob a baba do urso assim como a almofada escurecia sob a baba do telespectador do outro lado da tela, quase dormindo, minutos antes de trocar de canal.

18 de maio de 2011

A experiência de voar

Recentemente vi uma entrevista de um americano que atentava para a maravilha de voar. Ele apontava a grandiosidade de colocar um avião de toneladas de peso no ar e mante-lo seguramente lá durante todo o percurso, seja ele curto como uma ponte-aérea, seja longo como Rio-Hong Kong.


Concordei com ele na hora. É impressionante como a genialidade humana desafia as leis naturais e, para o bem do progresso, diminui as distancias amentando as velocidades valendo-se de se próprio intelecto. Por esse prisma, preocupar-se com o assento curto que mal cabem as pernas, as refeições de isopor e a falta de conforto nas classes mais comuns, perde todo o sentido. Palmas a esse americano ufanista.

Realmente a experiência de voar é quase magica. E é ela que compensa toda a complicação de se garantir um lugar dentro do vôo. Não há estresse maior do que a fila de check-in em uma grande cidade brasileira. A desorganização é geral. As empresas se esforçam e colocam à disposição opções pelo celular e pela internet, porém nenhum deles parece evitar esse fenômeno brasileiro chamado fila.

Se voce chega no aeroporto e ainda não comprou seu bilhete, enfrenta fila no balcão e no guichê. Se você já comprou seu bilhete, fica na fila do guichê. Se você já se adantou e fez o check-in pela internet ou pelo telefone, fica na fila de qualquer maneira daquela maquininha que emite o bilhete.

Isso só para garantir se lugar. Depois é fila pra ter a bagagem examinada pelo raio x, fila para embarcar, fila para desembarcar, fila para pegar a bagagem.

Eu queria saber onde esta a genialidade humana nessas horas. Se o homem consegue fazer voar uma estrutura de mais de vinte toneladas durante horas e horas, porque diabos não consegue fazer as filas desaparecerem? Ou pelo menos evitar que elas aconteçam.

Talvez o grande trunfo das empresas aéreas, o que encombre sua incompetência generalizada no atendimento a seus clientes antes do vôo, seja essa magia incompreendida da qual se valem na comunicação do seu serviço. No final, a experiência metafísica de voar acaba nos fazendo esquecer a estressante experiência de estar no solo dependendo delas para chega onde precisa. Pelo menos até o próximo embarque.

1 de abril de 2011

Manias

Eu não agüento quando escuto alguém dizer que todo mundo tem mania. Só porque o sujeito tem problemas quer colocar todo mundo no mesmo saco. Comigo não. Eu não tenho mania.

Eu tenho sim é pouca paciência para certas coisas. Certas coisas me irritam. Manias dos outros, por exemplo, me irritam.

Deixar a tampa da pasta de dente aberta me irrita. Me diz porque o sujeito fecha a torneira, mas não fecha a tampa da pasta de dente? Fecha a tampa do vaso, mas não fecha a tampa da pasta de dente. Fecha até a escova toda naquela caixinha de plástico, compridinha, sabe qual é? Para proteger dos germes. E não fecha a tampa da pasta de dente.

Não estou dizendo que eu fico irritado porque os germes vão entrar na pasta e infectar a tudo, não é isso, nem sou tão afrescalhado assim. Até porque isso, sim, seria mania: mania de limpeza, mania de achar que vai ficar doente, o que por si só, já é uma doença.Hipocondria.

Simplesmente me irrita chegar no banheiro e ver o tubo da pasta ali usado...largado...explorado e deixado de lado como uma casca de banana. E a tampinha, coitada, ouço até ela gritando “mamãe, mamãe, socorro!” desesperada.

Numa boa, não fico pensando que a pasta vai ressecar, empedrar...até porque, se empedrar, aperta mais forte um pouquinho e ela sai melhor. Ou então aperta no meio do tubo logo. Sabia que tem gente que não agüenta ver o tubo apertado no meio. Vai correndo atrás de um pente pra passar o cabo e empurrar a pasta toda pra frente. Pelo amor de Deus. Se forem contar comigo pra achar esse pente, estão ferrados!

Eu não estou nem aí para isso. Aperto onde pegar primeiro. Agora, imagina você pegando a pasta que passou, sei lá, três dias aberta. Você faz a força normal e nada. Aperta um pouco mais forte e ploft!, a pasta desentope de repente e suja tudo...lambuza a pia, tua camisa passada que você vestiu para trabalhar, a maior cagada. O que dá vontade de fazer é pegar a pasta e escrever no espelho do banheiro: NÃO ESQUEÇA DE FECHAR A PASTA DE DENTE SENÃO SUJA O BANHEIRO TODOOOOO!!!

Banheiro é o único cômodo da casa onde a pessoa pode ser ela mesma, sem pudor. O espelho não julga se você tá gordo demais, careca demais, feio demais, com aquela cara amarrotada que você acorda...o banheiro sempre te recebe de braços abertos.

A merda é que, se você mora com mais alguém, tem sempre um rastro de outra pessoa naquele seu santuário. Tem sempre uma memória de que alguém passou por ali enquanto você está querendo se expandir todo.

E isso é fato, as pessoas tem conceitos diferentes do que é e o que não é importante. Papel higiênico, por exemplo, tem gente que não pensa na próxima vez que vai precisar dele. Vai lá na hora do aperto, tum, tum, tum, usa a o rolo todo e não coloca outro no lugar quando acaba. E eu me pergunto: PORQUE? Será pensando que, por ser de papel, feito de árvore, a coisa vai crescer de novo ali, enroladinha? NÃO VAI!

Eu realmente não sei. Só sei que a gente só pensa mesmo no papel higiênico depois que já fez o que tinha que fazer. Ninguém já com o Mandela na porta de saída vai antes até o banheiro checar se tem papel e, não tendo, vai até o armário da área, retira o rolo da embalagem, descola a ponta e encaixa ele no lugar. Esquece! Mesmo que você ache que dá tempo, não vai dar.



E quando o papel fica dentro daquela portinha de metal do lado do vaso? Você que já está achando que o pior passou...já se aliviou da urgência e olha para a portinha fechada. Amigo, na hora de abrir aquela portinha é sempre tenso. Tu pensa “Ai Jesus...se estiver vazia, lá vou eu ter que ir até o armário da área com a calça no joelho e as pernas abertas, ridículo, para substituir...e se alguma coisa cair no chão no caminho? Putz...ainda vou ter que limpar a sala!”. Aí você vai, estende a mão, tremendo: ”Será que tem, será que não tem?” Danou-se! Desiste no meio. Já começa a procurar alternativas. Olha para a duchinha...paro o bidê...a toalha de rosto...mas só de pensar que vai ter que levantar naquela situação já dá uma angústia. Dá uma dor de barriga...você até decide ficar um pouco mais tempo sentado: ”Não, vai sair mais...não preciso do papel agora!” Mentira! Tudo para não abrir a portinha e ver o rolinho de papelão vazio pendendo lá dentro. Usado, explorado e largado como a pasta de dente. A diferença é que não dá para escrever no espelho NÃO ESQUEÇA DE TROCAR O PAPEL HIGIÊNICO SENÃO SUJA O BANHEIRO TODOOOO! com a sujeira que você ia limpar com o papel higiênico.

17 de março de 2011

Poesia 12

Canto meu coração neste poema
e não sem dor contraio a palma
papel picado, o risco e o destrato
enquanto me maltrato, reciclo minha alma

Simulo um belo conceito
e o escondo em palavras sem jeito
onde foi parar o sujeito
tão bom nas coisas da alma?

Seguro do mal neste escafandro
mergulho ereto na fenda abissal
Tateando como um cristo, cego e braços abertos
procurando as flores entre sarça e coral

De lá trarei o caule da ficção
dos poemas e versos que me escorrem com calma
E se todo esforço for vão
e as mudas não vingam e morrem
Poderei descer novamente
seguro ao escuro
onde mora minha alma

23 de fevereiro de 2011

Concurso de Poesia

Descobri que a Sociedade Bíblica Brasileira abriu um concurso de poesia com o tema A Bíblia e a Natureza - Falando de Deus com Arte. Apesar de ser um tema meio distante do meu repertório, encarei o desafio e me inscrevi com o texto abaixo. Como nunca soube o resultado do concurso (sinal claro da qualidade questionável do texto e que confirma minha distância do tema) publico agora sem medo de ser punido no Purgatório pelo sofrimento que venha a causar a você, leitor.


Na penumbra, tinha uma vaga idéia de Ti
Lá fora, a iluminar meus olhos
Mesmo por trás das pálpebras cerradas.
Nossas pegadas lado a lado, leves na areia
Transformaram-se em apenas duas, suas, mais pesadas.

Nos sons da Natureza se fizeram Teu sussurro
E me entreguei submisso à Tua verdade
Como a árvore missionária sustenta em papel Tuas palavras
Serei a concha com água às bocas sedentas de Divindade.

Essa água que é chuva, flocos de vida nova
Reluzentes lágrimas de alegria vindas do alto
Derrama qual cachoeira sobre o regato de minha alma.
Protege com Tua mão invisível meu caminho
E confirma o que em caverna já foi escrito
Convida o coração aflito à calma.

E escavam os rios os sorrisos da Tua glória
A alegria de fazer parte da História
A buscar a paz coletiva de um mar.
Nosso envolvimento gera o compromisso, nossa paixão é nossa entrega
Paciente, nos conduz qual gente cega
Transformando-nos na mudança que queremos perpetrar.

18 de fevereiro de 2011

Cavalos selvagens

Subi a ravina, perscrutei a campo aberto com as mãos sobre os olhos e lá estava ele. Minha vontade era pular no vazio do abismo que nos separava e agarrar-lhe a crina à unha. Mas, ansioso, dei as costas e desci na intenção de finalmente domar o animal. Conhecendo seu comportamento, dirigi-me ao lago onde, sabia, ele estacionaria quando o sol lhe fustigasse suficientemente o lombo. No caminho, apalpava os bolsos conferindo se tinha todas as ferramentas necessárias para o momento do encontro.

Um dia se passou antes que ele aparecesse. Ouvi seus cascos ao amanhecer, vinha levantando poeira atrás de si e mesmo antes que eu pudesse vê-lo, ele já havia me avistado e vinha arisco, marinado numa noite de receios.

Não me movi enquanto ele se aproximava do espelho d’água arruinando o encontro de lua e sol ao matar sua sede. Num dado momento, moviam-se apenas os astros e aquele pescoço sedento e musculoso.

Fiz menção de mover-me apenas quando percebi que ele estava saciado, mas, como se adivinhasse, levantou as orelhas e bufando deu alguns passos atrás. Levantei-me e ele marchou para mais longe e ficou de lá a fitar-me. Depois de tanto tempo observando-o ao largo e me aproximando aos poucos estava acostumando-o a dividir seu espaço comigo. Já o havia visto pastar, nadar e procriar. Dormir com fome e refestelar-se em forragem. Nesse convívio forçado, abri à fórceps um canto em sua vida, uma presença que começou no canto do seu olho e agora via-me todo e de frente. Ainda sim seu instinto mantinha-o afastado.

Não me importei com seu pinote assim que dei o primeiro passo em sua direção. Nem me assustei quando relinchou alto quando entendeu que eu não pararia. Escolhi aquele momento como derradeiro. Não deixaria aquela besta à solta nem mais um dia. Usaria aquela rebeldia e força a meu favor. Montaria sua velocidade, condicionaria sua potência, regozijaria sua liberdade.

Perto o suficiente, vi em seus olhos mistos de curiosidade e medo minha própria face refletida. Por um instante aquelas órbitas negras e profundas tinham alma e personalidade. Como o sol e a lua enamorando-se sobre o espelho d’água, nossos espíritos deram as mãos quando entreolhamo-nos. Suávamos. Eu por temer não conseguir domá-lo e ele por temer perder sua liberdade. Ainda assim avancei mais um pouco e quanto mais próximos maior o magnetismo.

Estendi a mão e senti sua pulsação ao tocar o focinho áspero. Dei-lhe um carinho e ele carinhosamente quis recebê-lo.

Conhecemos-nos durante a manhã e só quando o sol ia alto no céu eu pude oferecer-lhe freio e cela cuja aceitação foi dócil apesar da desconfiança inicial. Consegui montá-lo muito após o mergulho do sol no horizonte. Não foi fácil para ele acostumar-se com meu peso sobre si, com alguém a guiar-lhe o olhar e os passos; nem para mim conter sua força e vontade, aquele ímpeto de correr e sumir, de fazer o que lhe conviesse a qualquer instante.
Vinha a lua na metade de sua descida, já preparando sua despedida às estrelas quando meus braços perderam o tônus e minhas pernas fraquejaram. Num balanço brusco, mas já não tão brusco quanto os anteriores, caí sobre meu corpo exausto. Ferido, olhei-o imponente, esperando sua fuga. Mas ele permaneceu. Desceu o nariz ofegante e cheirou-me como se a certificar-se de minha vida ou minha morte. Sossegou quando levantei e, naquele instante em que nem sol nem lua dominam o céu, mas o compartilham, montei-o pela segunda vez e, dessa vez, acostumamo-nos. Ele mesmo freando suas vontades e eu gentil no direcionamento.

Combinamos, então, tacitamente, respeito mútuo e, em momentos específicos, nos permitimos deixar-se guiar, da parte dele, ou deixar-se seguir, de minha parte, enquanto o céu se permitia ostentar dois astros simultânea e harmoniosamente.