Estava pegando no sono. Meu pé esquerdo sentia o fluxo do rio onde estava pela metade, trazendo da ponta dos dedos uma sensação de pura paz. Não havia barulhos senão o murmurar baixo como um sussurro da água desfazendo-se em espuma contra uma pedra maior e o chacoalhar das copas das árvores tão altas que me desafiavam a visão quase desfalecida.
Acompanhava com olhos semicerrados a água em seu ir sem vir, numa única e decidida direção, para o baixo. Sem sucesso tentava carregar meu pé que, preso a mim, opunha uma resistência desleal. Sucesso, sim, tinha ao levar o leito, as pequenas pedras e os peixes que, dispondo da própria correnteza do rio, deixavam-se levar até não sei onde, o lugar onde os peixes preferem viver.
Porém, perto da outra margem havia um que lutava contra a força do rio. Era um salmão grande e vermelho. Via-se que lutava contra a correnteza sem, no entanto, conseguir sair do lugar. Se os tivesse, trincaria dentes e contrairia a fronte, num daqueles sinais humanos de esforço. Mas como peixe era, denotava outros sinais que qualquer observador, seja acostumado com o fenômeno, seja admirado com o inusitado, entenderia e lhe emprestaria um adjetivo humano qualquer para descrever essa luta, convenhamos desumana.
Acompanhei o peixe até o estertor das forças o que, para minha surpresa, não aconteceu uma, mas três ou quatro vezes. Era persistente, o danado. Quando eu achava que o rio havia vencido, varrendo o peixe para detrás de uma pedra, eis que após alguns minutos de descanso, voltava ele a sacolejar sua espinha rio acima.
Já desfeito de minha intenção de dormir e retirando finalmente meu pé de dentro daquele campo de batalha, fiquei acompanhando rio e peixe a se digladiarem refletindo sobre o que levaria o peixe a subir tamanha correnteza e, pior, o que levaria o rio a dificultar-lhe tanto o trabalho.
Rio e peixe são coisas que, diferente da gente, não se sentam à margem das cidades a refletir sobre as desventuras dos humanos em que nela vivem. Se o fizessem, porém, talvez não tivessem a mesma dificuldade que tive para dormir ao observar esta luta que descrevo.
Pois bem, refletia sobre as dificuldades de um e de outro e me vi sobre a pressão de julgar-lhes não as intenções, pois que são irracionais ambos e delas se privam, pelo menos até onde a ciência contemporânea entende, mas os instintos que a natureza põe em conflito. Mas como o rio em si não encerra, exceto em poesia, nem intenção nem instinto, foquemos no peixe a reflexão e deixemos o rio seguir seu curso.
O peixe sabe que sua cria tem mais chance de sobreviver se estiver numa calma lagoa, cercada como um forte-apache, sem predadores. Por isso, recorre a ela todo ano, pelo menos uma vez por ano, para procriar e, nesse período, se mais uma vez compararmos peixes e homens, o que se viria naquela lagoa seria um grande bacanal. Muitos peixes, machos e fêmeas agrupados num espaço fechado com um simples propósito: fazer com que o esperma de uns chegue e fecunde os ovos das outras. Tirando o fato de que agrupamentos humanos com esse específico propósito não existem, pelo menos não para procriação, tomamos pelo bacanal como a situação que parece ser a mais similar para termos de comparação, pois, mais uma vez, peixes são privados tanto de intenções quanto de responsabilidades e, se assim não fosse, com certeza não estariam os peixes por aí a fecundar qualquer peixa que lhe cruzasse o caminho, ou melhor dizendo, a corrente.
Nessa calma lagoa à qual recorrem tantos peixes e peixas acontece uma algazarra. São muitos indivíduos para um espaço diminuto. Chegam a uma conclusão coletiva: a de que, se permanecerem ali para sempre desfrutando da calma e da segurança, logo não haverá espaço, muito menos alimento, para eles e para a prole que está vindo e que é a razão primeira de eles mesmos estarem ali. Pois eis que, chegando a essa conclusão, os peixes, após certificados de que fizeram o que foram ali para fazer, deixam o local e voltam para o mar. Mas nem todos, há alguns que, exaustos da luta contra a correnteza e da ejaculação constante dos últimos dias, morrem ali mesmo e, religiosamente, dão de seu próprio corpo como alimento ao porvir das gerações.
Talvez mais impressionante do que a luta contra o rio seja o fato de que esses peixes, para procriar, voltem exatamente ao mesmo rio em que foram concebidos. Imaginem um diminuto peixe dentro da imensidão do oceano, sem placas que os orientem ou pontos de referência que os localizem, uma vez que, dentro do mar, qualquer coisa que permaneça imóvel por um longo período é consumido pelas algas, corais e outras coisas do gênero que fazem uma atualização constante da orografia e da decoração do lugar, tentando, após muito tempo e muito nado, voltar exatamente para seu ponto de partida. Talvez essa bússola interna, cujo Norte é seu ponto de partida, seja a compensação que a natureza achou por bem dar ao bicho que, não tendo intenção ou responsabilidade, se comprometeu desde os primórdios dos tempos a ser uma metáfora de completação de ciclos.
Ser concebido, nascer, deixar-se ao sabor do rio que vai e posteriormente ao sabor das marés que vão e vem, voltando, enfim, depois de muito nado, para o lugar onde tudo começou. E a volta é hercúlea, pois parece que nada ajuda o pobre peixe. Não havendo rota definida, uma vez chegando ao rio, este lhe barra o caminho com tanta intensidade que, mesmo que no final das contas chegue ao destino, que era primeiramente o lugar de onde nunca deveria ter saído, não lhe resta lá muito mais senão morrer.
Satisfeito com a definição do destino ictíaco, parei de refletir. Sentei-me e tirei a botina para colocar de novo meu pé esquerdo na água, pois minha intenção é estar com pelo menos metade do pé ao sabor do rio enquanto deixo meu corpo ao sabor do sono.